Voilá! Nesta entrevista, Cardoso lança mão do conceito de historioador-avestruz, aquele pelo qual sempre nos debatemos nos corredores das universidades.
Entrevista com o Professor Ciro Flamarion Cardoso
Por História Agora
19 de março de 2007 HISTÓRIA AGORA - O senhor tem criticado o "historiador-avestruz" em seus recentes artigos e livro. O que é? Podemos superá-lo?
Ciro Flamarion Cardoso - O que chamo “historiador-avestruz” é o que, vivendo o momento atual como não pdoe evitar de fazer, prefere não enxergar os seus problemas mais prementes e concentrar-se em temáticas que não têm a ver em forma direta com tais problemas. Note-se que esta ocultação de problemas reais sempre ocorreu, por exemplo, no discurso político, cujos invariantes derivam daquilo que não pode ser dito. Por exemplo, no discurso dos últimos governos brasileiros é possível ler freqüentemente que a previdência social (em função de “tendências demográficas”) e o funcionalismo público engolem uma parte grande demais dos recursos nacionais disponíveis; mas não é tão freqüente achar em falas de homens públicos a constatação de que tais recursos disponíveis são o magro resto que sobra depois, por exemplo, do serviço da dívida externa; ou de que, no Brasil, a parte sonegada dos impostos é bem maior do que a parte paga. Isto é assim porque, dada a sua base social real e os seus meios efetivos de ação, os governos têm pretendido diminuir os recursos para a previdência social e “recortar” o funcionalismo público, mas não se acham capazes ou interessados em modificar a fundo a questão da dívida externa, ou em atacar frontalmente o problema da evasão de impostos. Entretanto, o discurso da História e das outras ciências sociais, em países como o nosso, soía ser extremamente crítico do status quo e dos poderes vigentes e, não, conformista, como hoje muitas vezes é, de jure ou de facto (ou seja, militantemente ou por défaut). Acho que a superação do “historiador-avestruz” terá a ver com o ressurgimento de um horizonte de discurso portador de esperanças sociais mais amplas do que meras causas parcializadas (feminismo, ecologismo, etc.); e com o fato de que o próprio pequeno mundo dos historiadores seja crescentemente afetado − negativamente − pelas tendências do capitalismo contemporâneo, em especial em países como o nosso. Não por acaso, o assunto preferido hoje em dia nos debates de comunidades universitárias que deveriam ter interesses acadêmicos gira em torno de dinheiro, exatamente porque tal dinheiro anda escasso e é mais disputado do que no passado (na forma de bolsas e recursos para as pesquisas).
HA - Pode o historiador desprezar os fatores econômicos?
CFC - Poder, pode, como boa parte da produção atual mostra. Não deveria, no entanto, já que isso só faz empobrecer as suas análises.
HA - O senhor acha que o comportamento do historiador-avestruz contribuiu para o distanciamento entre a academia e a sociedade?
CFC - Sem dúvida. Um historiador que nada tem a dizer como historiador sobre os maiores debates que atravessam a sua sociedade está escrevendo só para a minoria que o lê.
HA - O senhor acha que a internet e a mídia são meios possíveis para superar esse distanciamento?
CFC - São, do mesmo modo que a imprensa tradicional, as revistas acadêmicas e a publicação de livros. Ou seja, tanto os meios de comunicação mais antigos quanto os mais atuais. É verdade, porém, que a universidade (e a escola em geral), neste ponto como em outros, está muito defasada relativamente às características mais marcantes do mundo contemporâneo. Seria importante, nos cursos de graduação de História, prever nos currículos e efetuar na prática um treinamento dos estudantes no uso adequado e criativo dos meios de comunicação desenvolvidos no seio da assim chamada “revolução informacional”. Para tanto, seria preciso superar sérias deficiências, de equipamento para começar: é relativamente fácil hoje em dia, em muitas universidades, mediante projetos de pesquisa que partam de unidades que contenham, por exemplo, pós-graduações renomadas, conseguir computadores; muito mais difícil é conseguir verbas para sua manutenção adequada e seus posteriores upgradings. Quanto ao aluno, no uso da Internet, é fácil que seja “sufocado” por uma enorme quantidade de “trash”, de informação de baixo nível e pouco útil, ou que leve mais tempo do que seria necessário para achar e compilar o que de fato lhe deve interessar, caso não disponha de treinamento sobre como usá-la bem, por exemplo, em pesquisas de História. Bem utilizada, ela é recurso da maior relevância. Para dar exemplos em minha área mais direta de atuação, a História Antiga: é possível acompanhar pela Internet o andamento de escavações efetuadas por universidades e outros órgãos acadêmicos e seus agentes em muitas partes do mundo; e, para os que estudem certos temas (cristianismo antigo, por exemplo), pode-se baixar gratuitamente da Internet praticamente toda a documentação primária necessária.
HA - Quais foram as circunstâncias que levaram a Nova Historia Cultural a ser uma das correntes predominantes entre os historiadores atualmente?
CFC - Não tenho problema algum com a ampliação das temáticas de estudo pelos historiadores. Acho ótimo que se tenham desenvolvido muitos temas de História Cultural não examinados no passado, bem como o conhecimento dos materiais documentais necessários a seu estudo, bem como dos métodos para tratá-los. O que me incomoda é uma Nova História Cultural que, tão unilateralmente quanto o cientificismo que critica, deseje ser uma alternativa à História estrutural e social que anteriormente se praticava (sem dúvida, também ela com distorções e exclusivismos desnecessários). Acho que o crescimento da Nova História Cultural nas modalidades em que se deu (isto é, como uam história das “representações coletivas” que pretende substituir a história econômico-social baseada nas estruturas), deveu-se a um processo multiforme em vários níveis, de fato ainda mal estudado no detalhe e em saus vinculações internas principais. Para exemplificar, são elementos de tal processo: o fato de que os historiadores marxistas e aqueles que eram próximos às tendências dos Annales da primeira e da segunda geração (ou seja, de até aproximadamente 1969) ignoraram ou subestimaram certas problemáticas que eram de interesse social, as quais então foram desenvolvidas por tendências antagônicas à historiografia marxista e dos Annales daquelas gerações; o desencanto de uma geração, em especial européia, que durante várias décadas acreditara na revolução social como possibilidade e que, frustrada em suas expectativas, tornou-se cética (ou mesmo cínica) ou, em casos extremos, “virou a casaca”, quando estava no auge de sua influência e portanto de sua credibilidade acadêmica, arrastando consigo muitas outras pessoas. A grande ideologia do capitalismo contemporâneo não é, porém, o pós-modernismo mas, sim, o neoconservadorismo neoliberal, o assim chamado “pensamento único”, que parte do princípio de que não existam alternativas ao próprio capitalismo em sua fase atual e tende a ignorar os que pensam de outro modo como proferidores de puro nonsense. Em História, apresenta o problema adicional de ser absolutamente anacronístico (ou seja, analisa diferentes sociedades e períodos como se as regras impostas pelo FMI fossem boas em si, independentemente do tempo e do espaço: ora, qualquer análise, mesmo perfunctória, da História Econômica dos países centrais mostrará uma realidade completamente diferente).
HA - Quais são os limites da (nova) história cultural e porque o senhor acredita que ela "tem prazo de duração"?
CFC - Remeto ao que disse anteriormente sobre a Nova História Cultural. Quanto aos componentes dela, o que creio é que alguns são mais consistentes do que outros e, portanto, terão maiores possibilidades de durar como campos de pesquisa. Em minha opinião, na sua maior parte, os estudos sobre “o quotidiano” ou sobre “o corpo”, por exemplo, se bem que não todos, caracterizam-se por um interesse dos mais limitados. O que acho que “tem prazo de duração” não é, em si, uma História Cultural, mas sim, que uma modalidade dela enxergue a si mesma como uma alternativa e, portanto, deseje eliminar e substituir uma História social atenta às estruturas e à longa duração. Esta última opinião, por sua vez, decorre de eu acreditar que nenhum dos problemas − sociais, filosóficos e outros − suscitados pela Modernidade tenha sido solucionado até agora.
HA - O tempo presente é um campo razoavelmente novo para os historiadores. Quais são em sua opinião os desafios, a relevância e os problemas desta nova aventura de Clio?
CFC - O interesse pela História Imediata ou do tempo presente não é assim tão novo! A professora Maria Yedda Linhares, por exemplo, ressalta com razão que tal interesse já norteava em boa medida a Cátedra de História Moderna e Contemporânea que ela dirigia, como catedrática, na Faculdade Nacional de Filosofia da Universidade do Brasil (atualmente, IFCS da UFRJ). Eu mesmo, como estudante de professores dessa cátedra, pesquisei em 1965, no final da graduação de História, ao escolher, na ocasião, especializar-me em História Contemporânea, orientado pelo professor Francisco Falcon, o tema − então candente e ainda em desenvolvimento − da descolonização no ex-Congo belga, com seus múltiplos conflitos e reviravoltas, ligados em boa parte aos interesses e intervenções do capitalismo internacional (e da ONU, a ele vinculada em boa parte) naquela região. As razões invocadas no passado contra a prática da História Imediata − em especial, que é preciso deixar passar algum tempo para que esfriem as paixões e se possa ser “imparcial”; ou que a documentação necessária em parte não esteja acessível para o passado imediato devido a “razões de Estado” − refletiam uma História que acreditava no mito da imparcialidade e dava importância exagerada ou, mais exatamente, unilateral à documentação e às temáticas políticas (estatais, militares, diplomáticas); de qualquer modo, limitada ou não por segredos estatais, a documentação sobre o passado imediato é infinitamente mais rica e variada do que aquela de que possamos dispor, por exemplo, para qualquer período ou assunto de História Antiga, Medieval ou Moderna! Além de ser muito mais fácil para qualquer um de nós entender o passado mais recente do que outro mais antigo, por estar muito mais próximo do presente que vivemos em suas características específicas. Outra bobagem que se dizia décadas atrás era que ao historiador compete como objeto o estudo do “passado”, sendo o presente a província das ciências sociais. Na verdade, o historiador, a meu ver, estuda as sociedades humanas (passadas ou presentes) no tempo e, por tal razão, traz aos estudos da História Imediata uma perspectiva bem-vinda por ser diferente da dos outros cientistas sociais: em especial, o historiador tem uma sensibilidade maior para o processo de transformação em sua fluidez; não sente tão fortemente a tentação de recortar o tempo em momentos imóveis comparados entre si (em função, por exemplo, de dados dos censos).
HA - As ciências de modo geral vêm sofrendo o impacto de uma crescente especialização. Quais os impactos deste processo no campo historiográfico?
CFC - A especialização é ao mesmo tempo impossível de evitar e, quando extrema, um problema muito sério. Como professor de pós-graduação, estou cansado de encontrar estudantes que sabem tudo ou quase sobre um tema delimitado, bem como conhecem a fundo as fontes para estudá-lo, e, ao mesmo tempo, não o sabem contextuar bem porque não dispõem, minimamente, de cultura histórica. Como pode, por exemplo, alguém que estuda o Brasil colonial ignorar profundamente a História de Portugal nos Tempos Modernos e, mais em geral, a História da Europa e a da África naqueles séculos, para não mencionar a da América Pré-Colombiana (ou a das sociedades indígenas sob os regimes coloniais)? Por acaso será da opinião de que achará dentro do Brasil colonial todo o necessário às explicações adequadas daquilo que constata? Uma das razões da especialização excessiva é o aumento muito grande de pesquisadores em História: cada um deve achar o seu nicho e precisa ser “original”. O problema é aumentado por uma formação de Graduação muitas vezes inadequada e já marcada, ela também, pela especialização perversa. Há professores que, na Graduação, dão cursos que só versam sobre suas próprias teses ou outras pesquisas pessoais, mesmo ao se tratar de disciplinas que deveriam ser gerais em suas ementas (e até são, nas especificações, não obedecidas, dos currículos). Isto é um verdadeiro crime contra os estudantes! E há programas de Graduação tão unilateralmente orientados, teórica e metodologicamente mas também nas temáticas que desenvolvem, que, nas bancas de seleção para mestrado e doutorado, ao ler uma ou duas frases de uma prova escrita ou de um projeto, reconhece-se imediatamente de que curso de História procede um dado candidato... Assim, existem aspectos do problema que são inerentes a como se desenvolveram os estudos de História, em especial depois da segunda guerra mundial (e, no Brasil, desde a generalização das pós-graduações em História a partir da década de 1970), e outros, mais fáceis de corrigir, que decorrem de distorções devidas à comodidade de docentes que não desejam gastar muito tempo preparando suas aulas nas disciplinas de Graduação. Pau neles, digo eu!
HA - Quais são suas expectativas em relação a nova geração de historiadores que são frutos da predominância da Nova História Cultural?
CFC - As novas gerações com freqüência se revoltam, em função das condições específicas (sociais, institucionais ou outras) que encontrem na atuação profissional, contra a formação que receberam na universidade. Uma vez percebidas as inadequações ou insuficiências de tal formação para agir na realidade como a percebem, tratam de treinar-se no que for necessário para conseguir desempenhar suas atividades dos modos que julguem adequados. Assim, o fato de ser passageiramente predominantes na Graduação as temáticas e opiniões da Nova História Cultural de nada servirá, chegado o momento (social) de sua superação entre os historiadores brasileiros. É verdade, porém, que países culturalmente dependentes como o nosso: 1) devido à falta de massa crítica suficiente, apresentam modas mais monolíticas (num país como a França, por exemplo, uma tendência muito predominante de qualquer modo não chegará nem mesmo a dominar a metade de um campo de estudos, que dirá 80 ou 90% dele!); 2) demoram mais a entrar nas novas modas e, também, a sair delas uma vez que entraram.
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