quarta-feira, 8 de setembro de 2010

009 - Historiador diz que Brasil é mais conformista do que outros países latino-americanos



Para João Furtado, estudioso da Inconfidência Mineira, raízes históricas explicam por que ânimo cívico dos cidadãos de outros países latino-americanos é maior do que o dos brasileiros, acostumados à abstenção.



Dentro do projeto "Da Terra do Fogo a Tijuana", que tematiza o bicentenário de independência dos países latino-americanos, o historiador João Pinto Furtado fala à Deutsche Welle a respeito dos mitos que envolvem a Inconfidência Mineira e dos preâmbulos da Independência do Brasil, que aconteceu em 1822.

Leia abaixo a íntegra da entrevista, em que Furtado ressalta a diversidade de perfis dos inconfidentes, compara o movimento às rebeliões ocorridas na Bahia e em Pernambuco e analisa como "nossa cidadania sempre foi muito mais trabalhada sob o signo da omissão que da participação".



Deutsche Welle: Você poderia situar a Inconfidência Mineira e o processo de Independência do Brasil no contexto latino-americano?

João Pinto Furtado: A economia passava no final do século 18 por um período de reestruturação. As grandes nações europeias tinham construído toda uma máquina de arrecadação, um império colonial, uma série de relações que em certo sentido cotizaram o controle do mundo conhecido. Todas as áreas da América eram permeáveis de alguma forma à interferência de alguma dessas nações.

Mas ao longo do século 18, o próprio universo europeu começou a se transformar. Algumas ideias foram surgindo e reformatando a relação entre as antigas metrópoles e suas colônias. Dentro desse processo de reformatação, surge uma crítica muito veemente à ideia da colonização como um todo.

Alguns teóricos iluministas tentaram rever as relações entre as metrópoles e suas colônias. A ideia fundamental era a de que todos os povos teriam algum direito à própria autodeterminação e ao direito de dispor sobre seus próprios percursos. Essas ideias começaram a chegar às elites tanto norte quanto latino-americanas.

Na América Latina, essas ideias começaram a questionar inicialmente o estatuto colonial. No caso do Brasil, perguntava-se por que um país rico como este teria que remeter parte de suas riquezas a Portugal. Perguntava-se com frequência qual era a legitimidade disso. Pois esse Estado do século 18 era uma esponja – a metáfora é da época – que tentava sugar toda a energia vital das colônias e, de fato, não dava nada em troca. O Estado arrecadava porque julgava que era direito do rei e pronto.

No Brasil, isso foi criando uma situação de muita insatisfação, porque você tinha um sistema de aferição de riquezas de mão única e nunca voltava nada do Estado. Isso foi criando um descontentamento muito grande. Com o advento do Iluminismo e das ideias liberais ganhando campo, parte das elites começou a reproduzir parte dessa ideologia e com isso criou-se um sistema de insurgência. E o questionamento da ordem metropolitana, mercantilista.

Esses insurgentes pertenciam às elites locais?

Sim. Os libertadores de outros trechos da América Latina, como do vice-reino do Prata ou do vice-reino do Peru, todos eles tinham uma origem elitista. Muito frequentemente tinham descendência ou até eram estrangeiros, tinham uma origem branca e nunca usavam o ideário ou a identidade indígena como argumento.

O presidente boliviano Evo MoralesIsso é uma diferença grande em relação ao contexto atual, em que você tem um Evo Morales, por exemplo, que evoca sua condição de indígena para postular uma autonomia nativa, por assim dizer. Esse processo é contemporâneo, na época da independência isso não era visto como um valor. As elites se julgavam tão mais elites quanto mais europeias elas fossem. Estudavam na Europa e se orgulhavam de ler autores que eram populares na Europa naquele momento.

Os inconfidentes foram movidos por razões meramente “egoístas”, de teor econômico, numa ânsia de não repassar mais riquezas para a metrópole? Não houve ali nenhum viés de luta por uma independência do país como nação com uma identidade própria? Os inconfidentes ignoravam, por exemplo, a abolição da escravatura...

A Inconfidência Mineira foi um movimento híbrido. Havia pelo menos 25 protagonistas, com interesses e motivações muito distintas. Havia alguns intelectuais, entre estes leitores assíduos dos teóricos do Iluminismo, pessoas com intenção de incluir o país numa certa forma de modernidade. E talvez até o próprio Tiradentes, que pelo que apreendi de sua figura, era uma pessoa interessada na construção de um futuro político.

Outros eram extremamente pragmáticos e não tinham esse horizonte emancipatório, libertador, revolucionário que o Iluminismo prognosticava. Eram conservadores em sua essência, membros de uma elite nobre, sem interesse de abrir mão dessa posição. Entre estes percebo certo pragmatismo, para não dizer oportunismo, ou seja, a ideia era demonstrar descontentamento para negociar com a Coroa e, com isso, melhorar suas posições de poder.

E havia os demais que ora gravitavam em torno do grupo que pensava uma alternativa política para o país e ora em torno do grupo que pensava pragmaticamente, de olho somente no próprio bolso. Essa heterogeneidade é a grande marca da Inconfidência Mineira, um movimento que, por isso, é muito difícil de ser classificado.

Quando a Inconfidência Mineira foi projetada, ela tinha um pé no passado e outro no futuro. Quando foi reprimida, o futuro começou a se apropriar dela. Ou seja, o futuro, historiograficamente falando, começou a construir essa ideia de que a Inconfidência havia sido uma grande utopia, renovadora, libertadora, nacionalista etc.

Mas quem construiu essa ideia foram aqueles que, no processo de independência do Brasil, foram reler a Inconfidência Mineira, quer dizer, 30 anos depois, voltaram os olhos para o passado e falaram: 'olha, tinha aquele pessoal lá em Minas, que pensou nisso'.

Mas aí pinçaram só as teses que lhes interessavam, aquelas que comprovavam a ideia de que havia um processo de emancipação em curso. E com isso acabaram construindo uma visão mistificadora: a de que a Inconfidência havia sido um movimento nativista por excelência.

E em relação aos outros movimentos, na Bahia em Pernambuco?

Na Bahia foi diferente. É preciso entender que a Inconfidência Mineira foi desbaratada a partir de março de 1789, quando não havia ainda eclodido o que ficou conhecido como Revolução Francesa. As ideias que chegavam a Minas Gerais naquele momento vinham através de livros e intelectuais, não eram ainda de um movimento social.

A partir do mesmo ano, quando a Inconfidência não existia mais, os franceses começam a acelerar e aquilo que ficou conhecido como a Revolução Francesa acontece de forma vertiginosa, ganhando, de fato, uma repercussão social muito grande. Isso transparece para o mundo inteiro.

Aí os baianos, quando têm notícia do que estava acontecendo na França, certamente se deixaram bafejar por essa inspiração. Eles não foram inspirados por ideias, mas por fatos concretos. Entre eles havia gente que falava: ‘vamos abolir a escravidão, acabar com as desigualdades, romper com a nobreza, com as elites, com a hierarquia”. Embora essa tentativa baiana também contasse com membros da elite.

Sob esse ponto de vista, a Revolução dos Alfaiates na Bahia seria até mesmo mais simbólica para o processo de independência do Brasil que a Inconfidência Mineira?

O movimento da Bahia, no entanto, não foi recuperado por uma série de motivos. Primeiro, ele não se prestava a uma apropriação, porque era radical demais para ser pensado simbolicamente, por exemplo quanto ao tema da escravidão, o que não houve de forma alguma em Minas Gerais.

Ao se apropriar da memória da Inconfidência Mineira, ela já vinha desapropriada desse caráter anti-escravagista. Já a baiana não, para fazer isso eles teriam que ter feito muita mágica. Esse é um dos fatores que fizeram com que a Inconfidência Mineira fosse privilegiada como movimento fundacional da independência.

E pelo fato de que sua repressão se deu no ano de 1989, dava-se uma associação muito fácil do ponto de vista ‘publicitário’ com os franceses. Criava-se aquela ideia: ‘olha, enquanto os franceses lá pensavam, pensávamos nós aqui também’. Isso criava certa simpatia pelo movimento.

O Brasil não rompeu realmente com a metrópole ao se tornar independente, o que ocorreu com outros países latino-americanos. Você poderia traçar um paralelo entre essas duas realidades?

No Brasil, o processo de emancipação foi conduzido por um descendente de quem até então estava no poder. O discurso tinha que ser relativamente moderado, não dava para vir com esse radicalismo revolucionário. Esse foi o primeiro ponto que criou certo distanciamento entre outros países latino-americanos e o Brasil.

Além de que, no Brasil, mantivemos a monarquia, enquanto em praticamente todos os outros países latino-americanos foi adotado o modelo republicano, o que gerava uma ruptura mais radical, ou seja, a ideia de estar começando do 'ano zero'. A república ‘reiniciou o tempo’. No caso do Brasil, não. A dinastia, a elite, a aristocracia era as mesmas. E portanto o controle das terras, do escravo, dos cargos e do Estado continuava a pertencer às mesmas pessoas.

Isso, do ponto de vista, nacionalista, gerava pouco fervor, ou seja, gerava a sensação de que a revolução era dos outros. Enquanto nos outros países a república gerou algum tipo de câmbio no desenho do próprio Estado. E isso com certeza gera diferenças profundas na percepção do fenômeno, tanto à época quanto na sua força e vigor de alimentar uma cidadania.

No caso do Brasil, nossa cidadania sempre foi muito mais trabalhada sob o signo da omissão que da participação. Há uma política de séculos, que não privilegia a participação no ato político, mas que privilegia, na verdade, o usofruto das benesses do Estado. Com isso, obviamente, o fervor cívico tende a ser menor.

Concordo com a ideia de que no Brasil, se compararmos com o Chile, a Argentina, até mesmo com o Paraguai, o nacionalismo é visto como um pouco fake, como algo antinatural. Não temos o mesmo orgulho cívico que essas outras nações.

Essa diferença de comportamento separa os brasileiros dos outros latino-americanos?

Sim, essa diferença tem raízes históricas, foi construída historicamente e criou diferentes leituras do que seja a nacionalidade. Enquanto em outros países latino-americanos essa ideia de nacionalidade é mais arraigada, mais participativa, a nossa é mais calcada na abstenção, no conformismo. Até hoje, eu diria.

É claro que um cientista político talvez fosse divergir do que eu digo afirmando que não há como classificar isso. No que ele teria razão, mas, mesmo assim, a percepção que o senso comum me dá e que a leitura crítica desse senso comum me dá tende a reiterar essa ideia. Nosso nacionalismo é arraigado em disputas esportivas, mas não é aquele que nos faria ir à guerra, por exemplo, por determinado tipo de convicção.

E esse outro tipo de nacionalismo você observa nos outros países latino-americanos?

De certa forma. A Bolívia, por exemplo, está à beira de uma guerra civil. Estão ali divergindo dois projetos de concepções totalmente distintas sobre o que é o Estado, o que é a Bolívia, o que deve ser a gestão etc. Vejo poucas possibilidades de um fenômeno como esse ocorrer no Brasil. Não consigo ver aqui a emergência desse ímpeto, desse ânimo cívico de maneira tão forte.

Não é questão de índole, de que o brasileiro fosse menos isso ou aquilo, é uma construção histórica. Tivemos cinco séculos de exclusão política construindo essa ideia. E a população hoje se julga de fato excluída, ela vai às urnas uma vez a cada quatro anos achando que está fazendo o melhor de si.

Se o voto não fosse obrigatório, iria menos ainda. Na verdade, a população não consegue enxergar a política cotidiana como sendo uma coisa sua. A população brasileira foi historicamente excluída e o preço que a gente paga hoje é esse: o de que essa exclusão continua.

Penso, como historiador, que essa exclusão sempre foi oportuna para quem detinha o mando político, o que continua sendo até hoje. Forjou-se um discurso participativo, mas, na prática, não se fez nada no país para reverter essa situação. Continuamos sob a égide dessa alienação.


João Pinto Furtado, professor de História e diretor da Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade Federal de Minas Gerais, é autor do livro O manto de Penélope – história, mito e memória da Inconfidência Mineira de 1788-9.



Autora: Soraia Vilela


Revisão: Roselaine Wandscheer



Fonte: http://www.dw-world.de/dw/article/0,,5308043,00.html

segunda-feira, 6 de setembro de 2010

008 – Thomas Skidmore: reflexões de um brazilianista (PARTE II)

INDEPENDÊNCIA DO BRASIL: DESAFIOS


“Qual foi o significado desse caminho para a independência brasileira? Primeiro, significava o rompimento dos laços políticos e administrativos com Portugal, que existiam há três séculos. Segundo, porque nunca chegou a haver qualquer questionamento da ordem socioeconômica, significava que o Brasil continuaria a ser dominado pela elite proprietária de terras, que era mais forte no Nordeste, no Rio de Janeiro, em Minas Gerais e em São Paulo. Terceiro, significava que o Brasil estaria sob influência econômica da Inglaterra. Isso tivera início quando os ingleses patrocinaram a transferência da corte portuguesa para o Brasil e emprestraram grandes somas à Coroa portuguesa para ajudá-la a consolidar seus domínios. Os brasileiros deviam agora assumir a grande dívida portuguesa com os britânicos (contraída em parte para lutar contra a independência brasileira!) e concordar em proporcionar aos britânicos condições favoráveis de comércio, isto é, tarifas baixas.

Questões relevantes permaneceram sem solução. A mais importante era a escravidão. O tráfico de escravos era a principal fonte de mão-de-obra do Brasil – e os britânicos estavam ameaçando a cortá-lo, como já haviam feito em 1808 com o tráfico de escravos para os Estados Unidos. Uma segunda questão era como a monarquia poderia assegurar a lealdade das províncias espalhadas pelo Brasil, em especial onde o republicanismo era particularmente forte, como em Pernambuco e em outras áreas do Nordeste. A questão final era o futuro da elite desse novo país. Os afro-brasileiros, escravos e libertos, como vimos, eram mais numerosos do que os brancos quando o Brasil se tornou independente. Em 1823 um observador aristocrático, desencorajado pela onda de revoluções liberais na América espanhola, estimava que dentro de três anos ‘a raça branca chegará ao fim nas mãos de outras raças e a província da Bahia desaparecerá do mundo civilizado’ “.

SKIDMORE, Thomas. Uma História do Brasil. São Paulo: Paz e Terra, 1998, pp. 60-1.

007 – Thomas Skidmore: reflexões de um brazilianista (PARTE I)


                                                    


FAS - “Uma História do Brasil” certamente seria mais uma obra do gênero se não fosse fruto dos olhos de quem está de fora. Afinal, o que teria um estrangeiro a dizer efetivamente sobre a nossa história? Não se trata de um aventureiro e sim de Thomas Skidmore em uma das suas mais ambiciosas obras sobre o nosso país. Nela, este conhecido brazilianista, um dos mais importantes historiadores estadunidenses especialistas em Brasil, tenta apreender o processo integral da formação do Brasil, que, ao seu ver, sempre almejou o status de país moderno e reconhecido internacionalmente.

A partir de hoje, “Historiografia em Controvérsia” está iniciando algumas transcrições desta obra. Estes trechos devem servir para refletirmos sobre os rumos do país e principalmente como seus variados problemas e desafios foram enfrentados ao longo da história.

Para saber mais sobre o autor:



Acessado em 06 de setembro de 2010

domingo, 5 de setembro de 2010

006 - Resenha do livro "Maldita Guerra" de Francisco Doratioto

FAS - Caros alunos, segue abaixo o link da resenha que servirá de base para a resenha que vocês deverão entregar sobre a Guerra do Paraguai. Façam o download, leiam e procurem compará-la com o que está exposto no módulo de vocês. Bom trabalho!


FAS - Para ajudá-los, segue também abaixo uma leitura complementar não obrigatória.


A guerra das versões


Um historiador diz que a Guerra do Paraguai não foi bem do jeito que se tem ensinado na escola

Marcelo Marthe


Nenhum episódio do passado brasileiro tem dividido tanto os historiadores quanto a Guerra do Paraguai. Encerrado há 132 anos, ao custo de mais de 200.000 vidas, o conflito já foi contado e recontado de várias formas. Durante décadas, prevaleceu uma visão oficialista, que enaltecia a vitória brasileira. Nos anos 70, porém, houve uma drástica reviravolta. Autores de esquerda passaram a interpretar os fatos sob a ótica marxista e inverteram os papéis de bandido e mocinho. O ditador paraguaio, Solano López, tornou-se uma espécie de visionário, paladino do progresso social na selva sul-americana. Já a atuação do Brasil passou a ser descrita como vergonhosa. O país só teria ido às armas por pressão da Inglaterra, a superpotência da época, e suas tropas teriam perpetrado um genocídio. Agora, sai uma obra que pretende revisar o revisionismo: Maldita Guerra (Companhia das Letras; 598 páginas; 45 reais). Seu autor, o historiador paulista Francisco Doratioto, está na linha de frente de uma corrente de estudiosos que se empenha em desmantelar a arraigada versão marxista. "A idéia de que Solano López foi um mártir antiimperialista é um disparate", diz ele.

É consenso entre os historiadores que a Guerra do Paraguai foi um momento decisivo na história do continente. Iniciado em dezembro de 1864, o conflito durou cinco anos e envolveu quatro países – Argentina, Brasil, Uruguai e Paraguai. O pomo de discórdia entre os estudiosos do tema sempre foram as razões por trás da luta. A versão marxista apregoa que a destruição do Paraguai foi orquestrada pela Inglaterra, insatisfeita com os ares de autonomia que o país tomava. Para Doratioto, as causas do conflito foram regionais e a intromissão inglesa um fator secundário. Em arquivos que vasculhou na Argentina, Brasil, Portugal, Vaticano e Paraguai, ele recolheu indícios de que a coroa inglesa teve uma atuação mais conciliatória do que se supunha. Pedra de toque em sua argumentação é uma carta inédita enviada ao governo paraguaio pelo cônsul inglês em Buenos Aires, na qual este se propõe a mediar a paz.

Maldita Guerra procura demolir o mito que se criou em torno de Solano López. Segundo Doratioto, a efígie do ditador esclarecido começou a ser forjada em seu país com objetivos pouco nobres. Ela se esboçou, primeiro, numa campanha de marketing promovida por seus familiares para tentar reaver os bens de López confiscados após a guerra. O livro procura mostrar que López, na realidade, foi um "caudilho caricato" que governou o Paraguai como se fosse uma estância rural e implantou um regime de terror contra os opositores. "Como a esquerda se acorvadou no Brasil, estão tentando reescrever a história de um modo desfavorável ao Paraguai", reage o jornalista Julio Chiavenatto, autor do best-seller que nos anos 70 detonou todo o revisionismo de esquerda, Genocídio Americano.

Embora Doratioto dedique parte do livro a desmentir a visão marxista, ele não promove uma volta ao velho tom oficialista. Maldita Guerra é, sobretudo, uma exaustiva retrospectiva do dia-a-dia no campo de batalha – e, ao descrevê-lo, o autor não poupa vencidos nem vencedores. Ele resgata, por exemplo, as vacilações do alto comando brasileiro, que teriam prolongado o conflito além do necessário e causado a perda de milhares de vidas. O almirante Tamandaré, responsável pela esquadra nacional, emerge de suas páginas como um inepto e o conde d'Eu, marido da princesa Isabel, como um covarde. Longe de ser exemplares, os soldados brasileiros eram inclinados à deserção e aos saques. O comportamento das tropas de Solano López não fugia muito disso. Com uma diferença: seus homens estavam programados para lutar até morrer. Ainda hoje, não há um diagnóstico conclusivo sobre as perdas paraguaias na guerra, porque inexistem estatísticas populacionais confiáveis. Segundo o historiador, só uma coisa é certa: elas não caracterizam um genocídio deliberado levado a cabo pelo Brasil. O número de mortos foi uma enormidade, mas não chega perto de 1 milhão de baixas, como os defensores de López sempre brandiram. Até porque, diz Doratioto, a população do Paraguai na época não totalizava a metade disso.


Acessado no dia 05 de setembro de 2010




005 - Eric Hobsbawn compara crise à queda da União Soviética, mas diz que pode fortalecer a direita



BBC

Hobsbawn: Estado terá papel maior na economia daqui por diante.

“A esquerda está virtualmente ausente. Assim, parece-me que o principal beneficiário deste descontentamento atual, com possível exceção nos Estados Unidos, será a direita”, disse o historiador Eri Hobsbawn, ao comparar o momento ao dramático colapso da União Soviética.

"Agora sabemos que estamos no fim de uma era e não se sabe o que virá pela frente”, afirmou ele.

Hobsbawn diz não acreditar que a linguagem marxista, que lhe serviu de norte ao longo de toda sua carreira, será proeminente politicamente, mas intelectualmente “a análise marxista sobre a forma com a qual o capitalismo opera será verdadeiramente importante”.


Abaixo, os principais trechos da entrevista.


Muitos consideram o que está acontecendo como volta ao estatismo e até do socialismo. O senhor concorda?

Bem, certamente estamos vivendo a crise mais grave do capitalismo desde a década de 30. Lembro-me de título recente do Financial Times que dizia: "O capitalismo em convulsão". Há muito tempo não lia título como esse no Financial Times.

Agora, acredito que esta crise está sendo mais dramática por causa dos mais de 30 anos de certa ideologia “teológica” do livre mercado, que todos os governos do Ocidente seguiram. porque, como Marx, Engels e Schumpter previram, a globalização - que está implícita no capitalismo -, não apenas destrói a herança da tradição como é incrivelmente instável: opera por meio de uma série de crises.

E o que está acontecendo agora está sendo reconhecido como o fim de era específica. Todos concordam que, de uma forma ou de outra, o Estado terá papel maior na economia daqui por diante.

Qualquer que seja o papel que os governos venham a assumir, será empreendimento público de ação e iniciativa, que será algo que orientará, organizará e dirigirá também a economia privada. Será muito mais economia mista do que tem sido até agora.

E em relação ao Estado como redistribuidor? O que tem sido feito até agora parece mais pragmático do que ideológico...

Acho que continuará sendo pragmático. O que tem acontecido nos últimos 30 anos é que o capitalismo global vem operando de uma forma incrivelmente instável, exceto, por várias razões, nos países ocidentais desenvolvidos.

No Brasil, nos anos 80, no México, nos 90, no sudeste asiático e Rússia, nos anos 90, e na Argentina, em 2000: todos sabiam que estas coisas poderiam levar a catástrofes a curto prazo. E para nós isto implicava quedas tremendas do FTSE (índice da bolsa de Londres), mas seis meses depois, recomeçávamos de novo.

Agora, temos os mesmos incentivos que tínhamos nos anos 30: se não fizermos nada, o perigo político e social será profundo e ainda mais depois de tudo, da forma com a qual o capitalismo se reformou durante e depois da guerra sob o princípio de “nunca mais” aos riscos dos anos 30.

O senhor viu esses riscos se tornarem realidade: estava na Alemanha quando Adolf Hitler chegou ao poder. O senhor acredita que algo parecido poderia acontecer como conseqüência dos problemas atuais?

Nos anos 30, o claro efeito político da Grande Depressão a curto prazo foi o fortalecimento da direita. A esquerda não foi forte até a chegada da guerra. Então, eu acredito que este é o principal perigo.

Depois da guerra, a esquerda esteve presente em várias partes da Europa, inclusive na Inglaterra, com o Partido Trabalhista, mas hoje isso já não acontece.

A esquerda está virtualmente ausente, Assim, me parece que o principal beneficiário deste descontentamento atual, com uma possível exceção – pelo menos eu espero – nos Estados Unidos, será a direita.

O que vemos agora não é o equivalente à queda da União Soviética para a direita? Os desafios intelectuais que isto implica para o capitalismo e o livre mercado são tão profundos como os desafios enfrentados pela esquerda em 1989?

Sim, concordo. Acredito que esta crise é equivalente ao dramático colapso da União Soviética. Agora sabemos que acabou uma era. Não sabemos o que virá pela frente.

A globalização, que está implícita no capitalismo, não apenas destrói uma herança da tradição como também é incrivelmente instável: opera por meio de uma série de crises.

Temos um problema intelectual: estávamos acostumados a pensar até então que havia apenas duas alternativas: ou o livre mercado ou o socialismo. Mas, na realidade, há muito poucos exemplos de um caso completo de laboratório de cada uma dessas ideologias.

Então eu acho que teremos de deixar de pensar em uma ou em outra e devemos pensar na natureza da mescla. E principalmente até que ponto esta mistura será motivada pela consciência do modelo socialista e das conseqüências sociais do que está acontecendo.

O senhor acredita que regressaremos à linguagem do marxismo?

Desde a crise dos anos 90, são os homens de negócio que começaram a falar assim: “Bem, Marx predisse esta globalização e podemos pensar que este capitalismo está fundamentado em uma série de crises”.

Não acredito que a linguagem marxista será proeminente politicamente, mas intelectualmente a natureza da análise marxista sobre a forma com a qual o capitalismo opera será verdadeiramente importante.

O senhor se sente um pouco recuperado depois de anos em que a opinião intelectual ia de encontro ao que o senhor pensava?

Bem, obviamente há um pouco a sensação de schadenfreude (regozijo pela desgraça alheia). Sempre dissemos que o capitalismo iria se chocar com suas próprias dificuldades, mas não me sinto recuperado.

O que é certo é que as pessoas descobrirão que de fato o que estava sendo feito não produziu os resultados esperados.

Durante 30 anos, os ideólogos disseram que tudo ia dar certo: o livre mercado é lógico e produz crescimento máximo. Sim, diziam que produzia um pouco de desigualdade aqui e ali, mas também não importava muito porque os pobres estavam um pouco mais prósperos.

Agora sabemos que o que aconteceu é que se criaram condições de instabilidades enormes, que criaram condições nas quais a desigualdade afeta não apenas os mais pobres, como também cada vez mais uma grande parte da classe média.

Sobretudo, nos últimos 30 anos, os benefíciários deste grande crescimento temos sido nós, no Ocidente, que vivemos uma vida imensuravelmente superior a qualquer outro lugar do mundo. E me surpreende muito que o Financial Times diga que o que se espera que aconteça agora é que este novo tipo de globalização controlada beneficie a quem realmente precisa, que se reduza a enorme diferença entre nós, que vivemos como príncipes, e a enorme maioria dos pobres.

Fonte: www.socialismo.org.br/portal/filosofia/154-entrevista/614-eric-hobsbawm-compara-crise-a-queda-da-uniao-sovietica-mas-diz-que-pode-fortalecer-a-direita

segunda-feira, 1 de fevereiro de 2010

004 - Profissão Historiador

FAS - Boa apresentação do Gabinete de Ensino Superior da Madeira sobre a profissão de historiador. Àqueles interessados, sejam bem-vindos aos prazeres e desprazeres do nosso ofício!



HISTORIADOR




Natureza do Trabalho

A profissão de historiador surgiu na Antiga Grécia com os primeiros relatos de viagens e durante muito tempo o historiador limitou-se a ser um mero cronista ou narrador, centrando os seus relatos, essencialmente, nos factos e nas datas dos acontecimentos.

Actualmente, o historiador procura não apenas narrar o passado, mas também compreender tudo aquilo que se liga à evolução dos acontecimentos históricos. A história é encarada como a problematização de determinada realidade, isto é, existe por parte do historiador um interesse sobre o "como" e o "porquê" dos acontecimentos. Assim, os historiadores pesquisam e analisam os acontecimentos e as actividades do passado das sociedades humanas, tendo sempre presente a preocupação de interpretar as informações que recolhem. Para isso utilizam muitas fontes de informação (escritas e não escritas), nomeadamente jornais, revistas, livros, diários, cartas, gravações, fotografias, entrevistas ou filmes.

Tradicionalmente, os historiadores têm desenvolvido as suas funções a um nível mais académico, uma vez que o seu trabalho tem consistido, sobretudo, na realização de estudos e trabalhos de investigação de natureza mais teórica. Procedem à selecção de um certo número de factos relativos à época em estudo e constituem com eles conjuntos de explicações que estão inter-relacionadas e são coerentes entre si, comparando-as com outros acontecimentos da época e descrevendo as informações obtidas de forma lógica. Este trabalho apresenta muitas vezes sérias dificuldades, pois se decifrar o que aconteceu já é complicado, estabelecer os motivos que fizeram com que acontecesse é-o ainda mais. Quando efectuam trabalho de investigação, os historiadores baseiam-se frequentemente em textos de outros autores ou especialistas. Por isso têm de confirmar a autenticidade, data e proveniência desses textos (crítica externa), avaliar a competência do autor (crítica de credibilidade) e interpretar esses textos com o intuito de avaliar a importância do seu testemunho (crítica interna).

Mais recentemente, o trabalho dos historiadores passou a contemplar também uma actuação mais prática que passa pela prevenção em áreas como a conservação do património. Por exemplo, quando integrados numa autarquia, os historiadores fazem o levantamento do património que existe, do que deve ser preservado e do que deve ser recuperado, procedendo a vistorias e estudos da zona em causa. Posteriormente, elaboram relatórios com pareceres relativos à futura intervenção, que entram em linha de conta com os aspectos históricos do objecto sobre o qual se vai intervir.

Mas a actividade dos historiadores, neste campo, vai mais além: são eles que ajudam a explicar às populações as alterações a introduzir em determinado espaço e as modificações que esta intervenção vai provocar na comunidade, quer nos aspectos sociais, quer nos histórico-culturais. Procuram, ainda, fazer com que as pessoas afectas à zona alvo de intervenção valorizem esse espaço e se sintam integradas (dinamização das populações), com o objectivo de levá-las a preservar e salvaguardar a realidade histórica local (sensibilização para o património). Num bairro histórico, por exemplo, o historiador procura explicar à população local as intervenções que estão ou virão a acontecer e a sua necessidade para a reabilitação/conservação do património histórico local, apelando para o envolvimento e participação da população nesse processo. Periodicamente, procedem à avaliação dos resultados das intervenções efectuadas, procurando estar atentos às reacções das pessoas. Por outro lado, avaliam também a adequação das intervenções nas estruturas arquitectónicas (designadamente, averiguam se as obras efectuadas respeitam a traça original dos edifícios).

Normalmente, os historiadores especializam-se num dado país ou região específica (Portugal, Península Ibérica, etc.), num determinado período de tempo (Idade Média, Idade Moderna, etc.) ou num campo de análise particular que pode ser, nomeadamente, história económico-social, história política, história diplomática, história da arte, história da literatura, história das religiões ou história das famílias. Também se podem especializar no estudo e preservação de material de arquivo, artefactos, edifícios e locais históricos. Hipóteses mais recentes são o estudo da história local ou regional (regra geral, ao serviço de uma autarquia) e, mais esporadicamente, o estudo da história de determinada instituição.

Sendo a história um saber qualitativo, não dispensa, contudo, o contributo das estatísticas, pelo que a utilização da informática se tem revelado um precioso instrumento de trabalho. Por outro lado, o acesso a novas tecnologias, como o CD-Rom, a Internet ou os microfilmes, entre outras, vieram provocar alterações no modo de utilização das bases de dados bibliográficas. De facto, com a utilização dos meios informáticos e de outros meios audiovisuais postos à disposição em arquivos e bibliotecas para a leitura e análise de documentos, os historiadores estão hoje mais apetrechados para analisarem e interpretarem os acontecimentos. Estes profissionais poderão também vir a utilizar as novas tecnologias para melhor divulgar junto dos cidadãos todo um espólio existente sobre determinada temática, por exemplo, através da criação de "museus virtuais".

A história exige por parte do historiador um conjunto de conhecimentos que lhe permita estudar o passado numa perspectiva global. Assim, é importante que o historiador possua noções de economia, filosofia, sociologia, política, antropologia, psicologia, literatura e linguística. Outros conhecimentos úteis ao historiador dependem da sua área de actuação. Em história da arte, por exemplo, é importante possuir conhecimentos de geografia, urbanismo, arquitectura e fotografia.

Na vertente mais prática do seu trabalho, por exemplo desenvolvido no âmbito de uma autarquia, é comum os historiadores colaborarem com profissionais de outras áreas, essencialmente arquitectos e sociólogos, mas também engenheiros, assistentes sociais e antropólogos. Aquando do trabalho de investigação, mais teórico, há quem prefira trabalhar sozinho e quem trabalhe em colaboração com outros historiadores, em que cada um estuda um determinado período ou assunto, havendo um elemento que coordena o trabalho. Estes profissionais podem precisar da colaboração de bibliotecários e arquivistas no decorrer das pesquisas bibliográficas que efectuam.

Dadas as suas características, esta profissão requer uma boa capacidade de comunicação oral e escrita. Persistência, paciência, capacidade para ouvir os outros e para aceitar diferentes opiniões e perspectivas e, ainda, ter bons conhecimentos de línguas, são também características importantes para quem queira seguir esta profissão.

Emprego

Tradicionalmente, o ensino tem sido a grande saída profissional dos historiadores, seja no ensino universitário, seja no básico e secundário. Contudo, esta situação alterou-se nos últimos anos, devido ao número crescente de licenciados em história e que, actualmente, é já manifestamente superior à oferta de lugares no ensino. Esta situação agravou-se pelo número crescente de profissionais de outras áreas de formação que leccionam disciplinas de história (no ensino básico e secundário), aumentado a concorrência para leccionar.

Em relação às outras áreas de actividade em que os historiadores podem trabalhar, a situação também não se apresenta muito melhor. Para aqueles que se queiram dedicar só à investigação, a solução mais frequente é a de recorrerem a uma bolsa de investigação, mas que é bastante difícil de obter. Ligada a esta área, pode-se considerar também a publicação de artigos e livros, mas que só é acessível aos historiadores com bastante experiência e prestígio no meio científico, sendo que mesmo para estes existem muitas dificuldades.

Nas actividades ligadas à protecção e conservação do património, a oferta de empregos é bastante escassa, quer seja por parte de entidades públicas como autarquias, museus, bibliotecas ou arquivos, quer seja por parte de entidades privadas como galerias de exposições ou outras instituições.

Deste modo, observa-se que, actualmente, o mercado de trabalho para os historiadores está saturado e que as perspectivas de saída profissional não são boas. A pouca procura que ainda existe centra-se nos grandes centros urbanos de Lisboa, Porto e Coimbra.

Formação e Evolução na Carreira

Aqueles que quiserem enveredar por esta profissão têm de começar por obter uma licenciatura em História:

Licenciaturas Estabelecimentos

Ensino Público

História Fac. de Letras da Univ. de Coimbra; Fac. de Letras da Univ. de Lisboa; Fac. de Letras da Univ. do Porto; Fac. de Ciências Sociais e Humanas da Univ. Nova de Lisboa; Univ. dos Açores (Ponta Delgada); Univ. do Minho (Braga)

História (ensino de) Univ. de Évora; Univ. do Minho (Braga)

História da Arte Fac. de Ciências Sociais e Humana da Univ. Nova de Lisboa

História Moderna e Contemporânea Inst. Sup. de Ciências do Trabalho e da Empresa (Lisboa)

História - ramo do Património Cultural Univ. de Évora

História - variante de História da Arte Fac. de Letras da Univ. de Coimbra; Fac. de Letras da Univ. de Lisboa; Fac. de Letras da Univ. do Porto

História - variante de Arqueologia Fac. de Letras da Univ. de Coimbra; Fac. de Letras da Univ. de Lisboa; Fac. de Ciências Sociais e Humanas da Univ. Nova de Lisboa; Fac. de Letras da Univ. do Porto; Univ. do Minho (Braga)

Ensino Particular e Cooperativo

História Univ. Autónoma de Lisboa Luís de Camões; Univ. Lusíada (Lisboa)

Ciências Históricas Univ. Portucalense Infante D. Henrique (Porto)

Universidade Católica Portuguesa

Português-História Fac. de Letras (Viseu)

Fonte: Guia de Acesso ao Ensino Superior - Candidatura/98 e Depto. do Ensino Superior do Min. da Educação (Outubro /98)

As disciplinas principais que constituem o núcleo de formação de um historiador são: História Económica, História Política e História Social nas várias épocas - Idade Média, Renascimento, Idade Moderna, Idade Contemporânea, entre outras. Existem outras disciplinas mais especializadas que variam consoante o ramo de especialização: História de Portugal, História da Arte, Etnografia, Paleografia, etc.

domingo, 31 de janeiro de 2010

003 - O Historiador-avestruz: Entrevista com Ciro Flammarion Cardoso

FAS -  Ciro Flammarion Cardoso dispensa qualquer comentário. Polêmico, Cardoso é um acadêmico “politicamente incorreto”, pois suas críticas são despossuídas de quaisquer refinos academicistas. Como intelectual marxista, particularmente, faltava apenas abandonar os muros da academia do qual nasceu, cresceu e infelizmente morrerá...Bem...como a grande maioria do tipo.

Voilá! Nesta entrevista, Cardoso lança mão do conceito de historioador-avestruz, aquele pelo qual sempre nos debatemos nos corredores das universidades.



Entrevista com o Professor Ciro Flamarion Cardoso


Por História Agora
19 de março de 2007

HISTÓRIA AGORA - O senhor tem criticado o "historiador-avestruz" em seus recentes artigos e livro. O que é? Podemos superá-lo?


Ciro Flamarion Cardoso - O que chamo “historiador-avestruz” é o que, vivendo o momento atual como não pdoe evitar de fazer, prefere não enxergar os seus problemas mais prementes e concentrar-se em temáticas que não têm a ver em forma direta com tais problemas. Note-se que esta ocultação de problemas reais sempre ocorreu, por exemplo, no discurso político, cujos invariantes derivam daquilo que não pode ser dito. Por exemplo, no discurso dos últimos governos brasileiros é possível ler freqüentemente que a previdência social (em função de “tendências demográficas”) e o funcionalismo público engolem uma parte grande demais dos recursos nacionais disponíveis; mas não é tão freqüente achar em falas de homens públicos a constatação de que tais recursos disponíveis são o magro resto que sobra depois, por exemplo, do serviço da dívida externa; ou de que, no Brasil, a parte sonegada dos impostos é bem maior do que a parte paga. Isto é assim porque, dada a sua base social real e os seus meios efetivos de ação, os governos têm pretendido diminuir os recursos para a previdência social e “recortar” o funcionalismo público, mas não se acham capazes ou interessados em modificar a fundo a questão da dívida externa, ou em atacar frontalmente o problema da evasão de impostos. Entretanto, o discurso da História e das outras ciências sociais, em países como o nosso, soía ser extremamente crítico do status quo e dos poderes vigentes e, não, conformista, como hoje muitas vezes é, de jure ou de facto (ou seja, militantemente ou por défaut). Acho que a superação do “historiador-avestruz” terá a ver com o ressurgimento de um horizonte de discurso portador de esperanças sociais mais amplas do que meras causas parcializadas (feminismo, ecologismo, etc.); e com o fato de que o próprio pequeno mundo dos historiadores seja crescentemente afetado − negativamente − pelas tendências do capitalismo contemporâneo, em especial em países como o nosso. Não por acaso, o assunto preferido hoje em dia nos debates de comunidades universitárias que deveriam ter interesses acadêmicos gira em torno de dinheiro, exatamente porque tal dinheiro anda escasso e é mais disputado do que no passado (na forma de bolsas e recursos para as pesquisas).



HA - Pode o historiador desprezar os fatores econômicos?

CFC - Poder, pode, como boa parte da produção atual mostra. Não deveria, no entanto, já que isso só faz empobrecer as suas análises.

HA - O senhor acha que o comportamento do historiador-avestruz contribuiu para o distanciamento entre a academia e a sociedade?

CFC - Sem dúvida. Um historiador que nada tem a dizer como historiador sobre os maiores debates que atravessam a sua sociedade está escrevendo só para a minoria que o lê.

HA - O senhor acha que a internet e a mídia são meios possíveis para superar esse distanciamento?

CFC - São, do mesmo modo que a imprensa tradicional, as revistas acadêmicas e a publicação de livros. Ou seja, tanto os meios de comunicação mais antigos quanto os mais atuais. É verdade, porém, que a universidade (e a escola em geral), neste ponto como em outros, está muito defasada relativamente às características mais marcantes do mundo contemporâneo. Seria importante, nos cursos de graduação de História, prever nos currículos e efetuar na prática um treinamento dos estudantes no uso adequado e criativo dos meios de comunicação desenvolvidos no seio da assim chamada “revolução informacional”. Para tanto, seria preciso superar sérias deficiências, de equipamento para começar: é relativamente fácil hoje em dia, em muitas universidades, mediante projetos de pesquisa que partam de unidades que contenham, por exemplo, pós-graduações renomadas, conseguir computadores; muito mais difícil é conseguir verbas para sua manutenção adequada e seus posteriores upgradings. Quanto ao aluno, no uso da Internet, é fácil que seja “sufocado” por uma enorme quantidade de “trash”, de informação de baixo nível e pouco útil, ou que leve mais tempo do que seria necessário para achar e compilar o que de fato lhe deve interessar, caso não disponha de treinamento sobre como usá-la bem, por exemplo, em pesquisas de História. Bem utilizada, ela é recurso da maior relevância. Para dar exemplos em minha área mais direta de atuação, a História Antiga: é possível acompanhar pela Internet o andamento de escavações efetuadas por universidades e outros órgãos acadêmicos e seus agentes em muitas partes do mundo; e, para os que estudem certos temas (cristianismo antigo, por exemplo), pode-se baixar gratuitamente da Internet praticamente toda a documentação primária necessária.


HA - Quais foram as circunstâncias que levaram a Nova Historia Cultural a ser uma das correntes predominantes entre os historiadores atualmente?

CFC - Não tenho problema algum com a ampliação das temáticas de estudo pelos historiadores. Acho ótimo que se tenham desenvolvido muitos temas de História Cultural não examinados no passado, bem como o conhecimento dos materiais documentais necessários a seu estudo, bem como dos métodos para tratá-los. O que me incomoda é uma Nova História Cultural que, tão unilateralmente quanto o cientificismo que critica, deseje ser uma alternativa à História estrutural e social que anteriormente se praticava (sem dúvida, também ela com distorções e exclusivismos desnecessários). Acho que o crescimento da Nova História Cultural nas modalidades em que se deu (isto é, como uam história das “representações coletivas” que pretende substituir a história econômico-social baseada nas estruturas), deveu-se a um processo multiforme em vários níveis, de fato ainda mal estudado no detalhe e em saus vinculações internas principais. Para exemplificar, são elementos de tal processo: o fato de que os historiadores marxistas e aqueles que eram próximos às tendências dos Annales da primeira e da segunda geração (ou seja, de até aproximadamente 1969) ignoraram ou subestimaram certas problemáticas que eram de interesse social, as quais então foram desenvolvidas por tendências antagônicas à historiografia marxista e dos Annales daquelas gerações; o desencanto de uma geração, em especial européia, que durante várias décadas acreditara na revolução social como possibilidade e que, frustrada em suas expectativas, tornou-se cética (ou mesmo cínica) ou, em casos extremos, “virou a casaca”, quando estava no auge de sua influência e portanto de sua credibilidade acadêmica, arrastando consigo muitas outras pessoas. A grande ideologia do capitalismo contemporâneo não é, porém, o pós-modernismo mas, sim, o neoconservadorismo neoliberal, o assim chamado “pensamento único”, que parte do princípio de que não existam alternativas ao próprio capitalismo em sua fase atual e tende a ignorar os que pensam de outro modo como proferidores de puro nonsense. Em História, apresenta o problema adicional de ser absolutamente anacronístico (ou seja, analisa diferentes sociedades e períodos como se as regras impostas pelo FMI fossem boas em si, independentemente do tempo e do espaço: ora, qualquer análise, mesmo perfunctória, da História Econômica dos países centrais mostrará uma realidade completamente diferente).

HA - Quais são os limites da (nova) história cultural e porque o senhor acredita que ela "tem prazo de duração"?

CFC - Remeto ao que disse anteriormente sobre a Nova História Cultural. Quanto aos componentes dela, o que creio é que alguns são mais consistentes do que outros e, portanto, terão maiores possibilidades de durar como campos de pesquisa. Em minha opinião, na sua maior parte, os estudos sobre “o quotidiano” ou sobre “o corpo”, por exemplo, se bem que não todos, caracterizam-se por um interesse dos mais limitados. O que acho que “tem prazo de duração” não é, em si, uma História Cultural, mas sim, que uma modalidade dela enxergue a si mesma como uma alternativa e, portanto, deseje eliminar e substituir uma História social atenta às estruturas e à longa duração. Esta última opinião, por sua vez, decorre de eu acreditar que nenhum dos problemas − sociais, filosóficos e outros − suscitados pela Modernidade tenha sido solucionado até agora.

HA - O tempo presente é um campo razoavelmente novo para os historiadores. Quais são em sua opinião os desafios, a relevância e os problemas desta nova aventura de Clio?

CFC - O interesse pela História Imediata ou do tempo presente não é assim tão novo! A professora Maria Yedda Linhares, por exemplo, ressalta com razão que tal interesse já norteava em boa medida a Cátedra de História Moderna e Contemporânea que ela dirigia, como catedrática, na Faculdade Nacional de Filosofia da Universidade do Brasil (atualmente, IFCS da UFRJ). Eu mesmo, como estudante de professores dessa cátedra, pesquisei em 1965, no final da graduação de História, ao escolher, na ocasião, especializar-me em História Contemporânea, orientado pelo professor Francisco Falcon, o tema − então candente e ainda em desenvolvimento − da descolonização no ex-Congo belga, com seus múltiplos conflitos e reviravoltas, ligados em boa parte aos interesses e intervenções do capitalismo internacional (e da ONU, a ele vinculada em boa parte) naquela região. As razões invocadas no passado contra a prática da História Imediata − em especial, que é preciso deixar passar algum tempo para que esfriem as paixões e se possa ser “imparcial”; ou que a documentação necessária em parte não esteja acessível para o passado imediato devido a “razões de Estado” − refletiam uma História que acreditava no mito da imparcialidade e dava importância exagerada ou, mais exatamente, unilateral à documentação e às temáticas políticas (estatais, militares, diplomáticas); de qualquer modo, limitada ou não por segredos estatais, a documentação sobre o passado imediato é infinitamente mais rica e variada do que aquela de que possamos dispor, por exemplo, para qualquer período ou assunto de História Antiga, Medieval ou Moderna! Além de ser muito mais fácil para qualquer um de nós entender o passado mais recente do que outro mais antigo, por estar muito mais próximo do presente que vivemos em suas características específicas. Outra bobagem que se dizia décadas atrás era que ao historiador compete como objeto o estudo do “passado”, sendo o presente a província das ciências sociais. Na verdade, o historiador, a meu ver, estuda as sociedades humanas (passadas ou presentes) no tempo e, por tal razão, traz aos estudos da História Imediata uma perspectiva bem-vinda por ser diferente da dos outros cientistas sociais: em especial, o historiador tem uma sensibilidade maior para o processo de transformação em sua fluidez; não sente tão fortemente a tentação de recortar o tempo em momentos imóveis comparados entre si (em função, por exemplo, de dados dos censos).

HA - As ciências de modo geral vêm sofrendo o impacto de uma crescente especialização. Quais os impactos deste processo no campo historiográfico?


CFC - A especialização é ao mesmo tempo impossível de evitar e, quando extrema, um problema muito sério. Como professor de pós-graduação, estou cansado de encontrar estudantes que sabem tudo ou quase sobre um tema delimitado, bem como conhecem a fundo as fontes para estudá-lo, e, ao mesmo tempo, não o sabem contextuar bem porque não dispõem, minimamente, de cultura histórica. Como pode, por exemplo, alguém que estuda o Brasil colonial ignorar profundamente a História de Portugal nos Tempos Modernos e, mais em geral, a História da Europa e a da África naqueles séculos, para não mencionar a da América Pré-Colombiana (ou a das sociedades indígenas sob os regimes coloniais)? Por acaso será da opinião de que achará dentro do Brasil colonial todo o necessário às explicações adequadas daquilo que constata? Uma das razões da especialização excessiva é o aumento muito grande de pesquisadores em História: cada um deve achar o seu nicho e precisa ser “original”. O problema é aumentado por uma formação de Graduação muitas vezes inadequada e já marcada, ela também, pela especialização perversa. Há professores que, na Graduação, dão cursos que só versam sobre suas próprias teses ou outras pesquisas pessoais, mesmo ao se tratar de disciplinas que deveriam ser gerais em suas ementas (e até são, nas especificações, não obedecidas, dos currículos). Isto é um verdadeiro crime contra os estudantes! E há programas de Graduação tão unilateralmente orientados, teórica e metodologicamente mas também nas temáticas que desenvolvem, que, nas bancas de seleção para mestrado e doutorado, ao ler uma ou duas frases de uma prova escrita ou de um projeto, reconhece-se imediatamente de que curso de História procede um dado candidato... Assim, existem aspectos do problema que são inerentes a como se desenvolveram os estudos de História, em especial depois da segunda guerra mundial (e, no Brasil, desde a generalização das pós-graduações em História a partir da década de 1970), e outros, mais fáceis de corrigir, que decorrem de distorções devidas à comodidade de docentes que não desejam gastar muito tempo preparando suas aulas nas disciplinas de Graduação. Pau neles, digo eu!



HA - Quais são suas expectativas em relação a nova geração de historiadores que são frutos da predominância da Nova História Cultural?

CFC - As novas gerações com freqüência se revoltam, em função das condições específicas (sociais, institucionais ou outras) que encontrem na atuação profissional, contra a formação que receberam na universidade. Uma vez percebidas as inadequações ou insuficiências de tal formação para agir na realidade como a percebem, tratam de treinar-se no que for necessário para conseguir desempenhar suas atividades dos modos que julguem adequados. Assim, o fato de ser passageiramente predominantes na Graduação as temáticas e opiniões da Nova História Cultural de nada servirá, chegado o momento (social) de sua superação entre os historiadores brasileiros. É verdade, porém, que países culturalmente dependentes como o nosso: 1) devido à falta de massa crítica suficiente, apresentam modas mais monolíticas (num país como a França, por exemplo, uma tendência muito predominante de qualquer modo não chegará nem mesmo a dominar a metade de um campo de estudos, que dirá 80 ou 90% dele!); 2) demoram mais a entrar nas novas modas e, também, a sair delas uma vez que entraram.

segunda-feira, 25 de janeiro de 2010

002 - Perry Anderson: Balanço do neoliberalismo

Perry Anderson: Balanço do neoliberalismo




Comecemos com as origens do que se pode definir do neoliberalismo como fenômeno distinto do simples liberalismo clássico, do século passado. O neoliberalismo nasceu logo depois da II Guerra Mundial, na região da Europa e da América do Norte onde imperava o capitalismo. Foi uma reação teórica e política veemente contra o Estado intervencionista e de bem-estar. Seu texto de origem é O Caminho da Servidão, de Friedrich Hayek, escrito já em 1944. Trata-se de um ataque apaixonado contra qualquer limitação dos mecanismos de mercado por parte do Estado, denunciadas como uma ameaça letal à liberdade, não somente econômica, mas também política. O alvo imediato de Hayek, naquele momento, era o Partido Trabalhista inglês, às vésperas da eleição geral de 1945 na Inglaterra, que este partido efetivamente venceria. A mensagem de Hayek é drástica: "Apesar de suas boas intenções, a social-democracia moderada inglesa conduz ao mesmo desastre que o nazismo alemão – uma servidão moderna".



Três anos depois, em 1947, enquanto as bases do Estado de bem-estar na Europa do pós-guerra efetivamente se construíam, não somente na Inglaterra, mas também em outros países, neste momento Hayek convocou aqueles que compartilhavam sua orientação ideológica para uma reunião na pequena estação de Mont Pèlerin, na Suíça. Entre os célebres participantes estavam não somente adversários firmes do Estado de bem-estar europeu, mas também inimigos férreos do New Deal norte-americano. Na seleta assistência encontravam-se Milton Friedman, Karl Popper, Lionel Robbins, Ludwig Von Mises, Walter Eupken, Walter Lipman, Michael Polanyi, Salvador de Madariaga, entre outros. Aí se fundou a Sociedade de Mont Pèlerin, uma espécie de franco-maçonaria neoliberal, altamente dedicada e organizada, com reuniões internacionais a cada dois anos. Seu propósito era combater o keynesianismo e o solidarismo reinantes e preparar as bases de um outro tipo de capitalismo, duro e livre de regras para o futuro. As condições para este trabalho não eram de todo favoráveis, uma vez que o capitalismo avançado estava entrando numa longa fase de auge sem precedentes – sua idade de ouro –, apresentando o crescimento mais rápido da história, durante as décadas de 50 e 60. Por esta razão, não pareciam muito verossímeis os avisos neoliberais dos perigos que representavam qualquer regulação do mercado por parte do Estado. A polêmica contra a regulação social, no entanto, tem uma repercussão um pouco maior. Hayek e seus companheiros argumentavam que o novo igualitarismo (muito relativo, bem entendido) deste período, promovido pelo Estado de bem-estar, destruía a liberdade dos cidadãos e a vitalidade da concorrência, da qual dependia a prosperidade de todos. Desafiando o consenso oficial da época, eles argumentavam que a desigualdade era um valor positivo – na realidade imprescindível em si –, pois disso precisavam as sociedades ocidentais. Esta mensagem permaneceu na teoria por mais ou menos 20 anos.



A chegada da grande crise do modelo econômico do pós-guerra, em 1973, quando todo o mundo capitalista avançado caiu numa longa e profunda recessão, combinando, pela primeira vez, baixas taxas de crescimento com altas taxas de inflação, mudou tudo. A partir daí as idéias neoliberais passaram a ganhar terreno. As raízes da crise, afirmavam Hayek e seus companheiros, estavam localizadas no poder excessivo e nefasto dos sindicatos e, de maneira mais geral, do movimento operário, que havia corroído as bases de acumulação capitalista com suas pressões reivindicativas sobre os salários e com sua pressão parasitária para que o Estado aumentasse cada vez mais os gastos sociais.



Esses dois processos destruíram os níveis necessários de lucros das empresas e desencadearam processos inflacionários que não podiam deixar de terminar numa crise generalizada das economias de mercado. O remédio, então, era claro: manter um Estado forte, sim, em sua capacidade de romper o poder dos sindicatos e no controle do dinheiro, mas parco em todos os gastos sociais e nas intervenções econômicas. A estabilidade monetária deveria ser a meta suprema de qualquer governo. Para isso seria necessária uma disciplina orçamentária, com a contenção dos gastos com bem-estar, e a restauração da taxa "natural" de desemprego, ou seja, a criação de um exército de reserva de trabalho para quebrar os sindicatos. Ademais, reformas fiscais eram imprescindíveis, para incentivar os agentes econômicos. Em outras palavras, isso significava reduções de impostos sobre os rendimentos mais altos e sobre as rendas. Desta forma, uma nova e saudável desigualdade iria voltar a dinamizar as economias avançadas, então às voltas com uma estagflação, resultado direto dos legados combinados de Keynes e de Beveridge, ou seja, a intervenção anticíclica e a redistribuição social, as quais haviam tão desastrosamente deformado o curso normal da acumulação e do livre mercado. O crescimento retornaria quando a estabilidade monetária e os incentivos essenciais houvessem sido restituídos.



A hegemonia deste programa não se realizou do dia para a noite. Levou mais ou menos uma década, os anos 70, quando a maioria dos governos da OCDE – Organização Européia para o Comércio e Desenvolvimento – tratava de aplicar remédios keynesianos às crises econômicas. Mas, ao final da década, em 1979, surgiu a oportunidade. Na Inglaterra, foi eleito o governo Thatcher, o primeiro regime de um país de capitalismo avançado publicamente empenhado em pôr em prática o programa neoliberal. Um ano depois, em 1980, Reagan chegou à presidência dos Estados Unidos. Em 1982, Khol derrotou o regime social liberal de Helmut Schimidt, na Alemanha. Em 1983, a Dinamarca, Estado modelo do bem-estar escandinavo, caiu sob o controle de uma coalizão clara de direita, o governo de Schluter. Em seguida, quase todos os países do norte da Europa ocidental, com exceção da Suécia e da Áustria, também viraram à direita. A partir daí, a onda de direitização desses anos tinha um fundo político para além da crise econômica do período. Em 1978, a segunda guerra fria eclodiu com a intervenção soviética no Afeganistão e a decisão norte-americana de incrementar uma nova geração de foguetes nucleares na Europa ocidental. O ideário do neoliberalismo havia sempre incluído, como componente central, o anticomunismo mais intransigente de todas as correntes capitalistas do pós-guerra. O novo combate contra o império do mal – a servidão humana mais completa aos olhos de Hayek – inevitavelmente fortaleceu o poder de atração do neoliberalismo político, consolidando o predomínio da nova direita na Europa e na América do Norte. Os anos 80 viram o triunfo mais ou menos incontrastado da ideologia neoliberal nesta região do capitalismo avançado.



O que fizeram, na prática, os governos neoliberais deste período? O modelo inglês foi, ao mesmo tempo, o pioneiro e o mais puro. Os governos Thatcher contraíram a emissão monetária, elevaram as taxas de juros, baixaram drasticamente os impostos sobre os rendimentos altos, aboliram controles sobre os fluxos financeiros, criaram níveis de desemprego massivos, aplastaram greves, impuseram uma nova legislação anti-sindical e cortaram gastos sociais. E, finalmente – esta foi uma medida surpreendentemente tardia –, se lançaram num amplo programa de privatização, começando por habitação pública e passando em seguida a indústrias básicas como o aço, a eletricidade, o petróleo, o gás e a água. Esse pacote de medidas é o mais sistemático e ambicioso de todas as experiências neoliberais em países de capitalismo avançado.



A variante norte-americana era bem distinta. Nos Estados Unidos, onde quase não existia um Estado de bem-estar do tipo europeu, a prioridade neoliberal era mais a competição militar com a União Soviética, concebida como uma estratégia para quebrar a economia soviética e, por esta via, derrubar o regime comunista na Rússia. Deve-se ressaltar que, na política interna, Reagan também reduziu os impostos em favor dos ricos, elevou as taxas de juros e aplastou a única greve séria de sua gestão. Mas, decididamente, não respeitou a disciplina orçamentária; ao contrário, lançou-se numa corrida armamentista sem precedentes, envolvendo gastos militares enormes, que criaram um déficit público muito maior do que qualquer outro presidente da história norte-americana. Mas esse recurso a um keynesianismo militar disfarçado, decisivo para uma recuperação das economias capitalistas da Europa ocidental e da América do Norte, não foi imitado. Somente os Estados Unidos, por causa de seu peso na economia mundial, podiam dar-se ao luxo do déficit massivo na balança de pagamentos que resultou de tal política.



No continente europeu, os governos de direita deste período – amiúde com fundo católico – praticaram em geral um neoliberalismo mais cauteloso e matizado que as potências anglo-saxônicas, mantendo a ênfase na disciplina orçamentária e nas reformas fiscais, mais do que em cortes brutais de gastos sociais ou enfrentamentos deliberados com os sindicatos. Contudo, a distância entre estas políticas e as da social-democracia governante anterior já era grande. E, enquanto a maioria dos países no norte da Europa elegia governos de direita empenhados em várias versões do neoliberalismo, no sul do continente – território de De Gaulle, Franco, Salazar, Fanfani, Papadopoulos, etc. –, previamente uma região muito mais conservadora politicamente, chegavam ao poder, pela primeira vez, governos de esquerda, chamados de euro-socialistas: Miterrand, na França; González, na Espanha; Soares, em Portugal; Craxi, na Itália; Papandreou, na Grécia. Todos se apresentavam como uma alternativa progressista, baseada em movimentos operários ou populares, contrastando com a linha reacionária dos governos de Reagan, Thatcher, Khol e outros do norte da Europa. Não há dúvida, com efeito, de que pelo menos Miterrand e Papandreou, na França e na Grécia, genuinamente se esforçaram para realizar uma política de deflação e redistribuição, de pleno emprego e de proteção social. Foi uma tentativa de criar um equivalente no sul da Europa do que havia sido a social-democracia do pós-guerra no norte do continente em seus anos de ouro. Mas o projeto fracassou, e já em 1982 e 1983 o governo socialista na França se viu forçado pelos mercados financeiros internacionais a mudar seu curso dramaticamente e reorientar-se para fazer uma política muito próxima à ortodoxia neoliberal, com prioridade para a estabilidade monetária, a contenção do orçamento, concessões fiscais aos detentores de capital e abandono do pleno emprego. No final da década, o nível de desemprego na França socialista era mais alto do que na Inglaterra conservadora, como Thatcher se gabava amiúde de assinalar. Na Espanha, o governo de González jamais tratou de realizar uma política keynesiana ou redistributiva. Ao contrário, desde o início o regime do partido no poder se mostrou firmemente monetarista em sua política econômica: grande amigo do capital financeiro, favorável ao princípio de privatização e sereno quando o desemprego na Espanha rapidamente alcançou o recorde europeu de 20% da população ativa.



Enquanto isso, no outro lado do mundo, na Austrália e na Nova Zelândia, o mesmo padrão assumiu proporções verdadeiramente dramáticas. Sucessivos governos trabalhistas ultrapassaram os conservadores locais de direita com programas de neoliberalismo radical – na Nova Zelândia, provavelmente o exemplo mais extremo de todo o mundo capitalista avançado, desmontando o Estado de bem-estar muito mais completa e ferozmente do que Thatcher na Inglaterra.



O que demonstravam estas experiências era a hegemonia alcançada pelo neoliberalismo como ideologia. No início, somente governos explicitamente de direita radical se atreveram a pôr em prática políticas neoliberais; depois, qualquer governo, inclusive os que se autoproclamavam e se acreditavam de esquerda, podia rivalizar com eles em zelo neoliberal. O neoliberalismo havia começado tomando a social-democracia como sua inimiga central, em países de capitalismo avançado, provocando uma hostilidade recíproca por parte da social-democracia. Depois, os governos social-democratas se mostraram os mais resolutos em aplicar políticas neoliberais. Nem todas as social-democracias, bem entendido. Ao final dos anos 80, a Suécia e a Áustria ainda resistiam à onda neoliberal da Europa. E, fora do continente europeu, o Japão também continuava isento de qualquer pressão ou tentação neoliberal. Mas, nos demais países da OCDE, as idéias da Sociedade de Mont Pèlerin haviam triunfado plenamente. Poder-se-ia perguntar qual a avaliação efetiva da hegemonia neoliberal no mundo capitalista avançado, pelo menos durante os anos 80. Cumpriu suas promessas ou não? Vejamos o panorama de conjunto. A prioridade mais imediata do neoliberalismo era deter a grande inflação dos anos 70. Nesse aspecto, seu êxito foi inegável. No conjunto dos países da OCDE, R taxa de inflação caiu de 8,8% para 5,2%, entre os anos 70 e 80, e a tendência de queda continua nos anos 90. A deflação, por sua vez, deveria ser a condição para a recuperação dos lucros. Também nesse sentido o neoliberalismo obteve êxitos reais. Se, nos anos 70, a taxa de lucro das indústrias nos países da OCDE caiu em cerca de 4,2%, nos anos 80 aumentou 4,7%. Essa recuperação foi ainda mais impressionante na Europa Ocidental como um todo, de 5,4 pontos negativos para 5,3 pontos positivos. A razão principal dessa transformação foi, sem dúvida, a derrota do movimento sindical, expressado na queda drástica do número de greves durante os anos 80 e numa notável contenção dos salários. Essa nova postura sindical, muito mais moderada, por sua vez, em grande parte era produto de um terceiro êxito do neoliberalismo, ou seja, o crescimento das taxas de desemprego, concebido como um mecanismo natural e necessário de qualquer economia de mercado eficiente. A taxa média de desemprego nos países da OCDE, que havia ficado em torno de 4% nos anos 70, pelo menos duplicou na década de 80. Também este foi um resultado satisfatório. Finalmente, o grau de desigualdade – outro objetivo sumamente importante para o neoliberalismo – aumentou significativamente no conjunto dos países da OCDE: a tributação dos salários mais altos caiu 20% em média nos anos 80, e os valores das bolsas aumentaram quatro vezes mais rapidamente do que os salários.



Então, em todos estes itens, deflação, lucros, empregos e salários, podemos dizer que o programa neoliberal se mostrou realista e obteve êxito. Mas, no final das contas, todas estas medidas haviam sido concebidas como meios para alcançar um fim histórico, ou seja, a reanimação do capitalismo avançado mundial, restaurando taxas altas de crescimento estáveis, como existiam antes da crise dos anos 70. Nesse aspecto, no entanto, o quadro se mostrou absolutamente decepcionante. Entre os anos 70 e 80 não houve nenhuma mudança – nenhuma – na taxa de crescimento, muito baixa nos países da OCDE. Dos ritmos apresentados durante o longo auge, nos anos 50 e 60, restam somente uma lembrança distante.



Qual seria a razão deste resultado paradoxal? Sem nenhuma dúvida, o fato de que – apesar de todas as novas condições institucionais criadas em favor do capital – a taxa de acumulação, ou seja, da efetiva inversão em um parque de equipamentos produtivos, não apenas não cresceu durante os anos 80, como caiu em relação a seus níveis – já médios – dos anos 70. No conjunto dos países de capitalismo avançado, as cifras são de um incremento anual de 5,5% nos anos 60, de 3,6% nos anos 70, e nada mais do que 2,9% nos anos 80. Uma curva absolutamente descendente.



Cabe perguntar por que a recuperação dos lucros não levou a uma recuperação dos investimentos. Essencialmente, pode-se dizer, porque a desregulamentação financeira, que foi um elemento tão importante do programa neoliberal, criou condições muito mais propícias para a inversão especulativa do que produtiva. Durante os anos 80 aconteceu uma verdadeira explosão dos mercados de câmbio internacionais, cujas transações, puramente monetárias, acabaram por diminuir o comércio mundial de mercadorias reais. O peso de operações puramente parasitárias teve um incremento vertiginoso nestes anos. Por outro lado – e este foi, digamos, o fracasso do neoliberalismo –, o peso do Estado de bem-estar não diminuiu muito, apesar de todas as medidas tomadas para conter os gastos sociais. Embora o crescimento da proporção do produto bruto nacional consumida pelo Estado tenha sido notavelmente desacelerado, a proporção absoluta não caiu, mas aumentou, de mais ou menos 46% para 48% do PNB médio dos países da OCDE durante os anos 80. Duas razões básicas explicam este paradoxo: o aumento dos gastos sociais com o desemprego, que custaram bilhões ao Estado, e o aumento demográfico dos aposentados na população, que levou o Estado a gastar outros bilhões em pensões.



Por fim, ironicamente, quando o capitalismo avançado entrou de novo numa profunda recessão, em 1991, a dívida pública de quase todos os países ocidentais começou a reassumir dimensões alarmantes, inclusive na Inglaterra e nos Estados Unidos, enquanto que o endividamento privado das famílias e das empresas chegava a níveis sem precedentes desde a II Guerra Mundial. Atualmente, com a recessão dos primeiros anos da década de 90, todos os índices econômicos tornaram-se muito sombrios nos países da OCDE, onde, presentemente, há cerca de 38 milhões de desempregados, aproximadamente duas vezes a população total da Escandinávia. Nestas condições de crise muito aguda, pela lógica, era de se esperar uma forte reação contra o neoliberalismo nos anos 90. Isso aconteceu? Ao contrário, por estranho que pareça, o neoliberalismo ganhou um segundo alento, pelo menos em sua terra natal, a Europa. Não somente o thatcherismo sobreviveu à própria Thatcher, com a vitória de Major nas eleições de 1992 na Inglaterra. Na Suécia, a social-democracia, que havia resistido ao avanço neoliberal nos anos 80, foi derrotada por uma frente unida de direita em 1991. O socialismo francês saiu bastante desgastado das eleições de 1993. Na Itália, Berlusconi – uma espécie de Reagan italiano – chegou ao poder à frente de uma coalizão na qual um dos integrantes era um partido oficialmente facista até recentemente. Na Alemanha, o governo de Kohl provavelmente continuará no poder. Na Espanha, a direita está às portas do poder.



Mas, para além desses êxitos eleitorais, o projeto neoliberal continua a demonstrar uma vitalidade impressionante. Seu dinamismo não está ainda esgotado, como se pode ver na nova onda de privatizações em países até recentemente bastante resistentes a elas, como Alemanha, Áustria e Itália. A hegemonia neoliberal se expressa igualmente no comportamento de partidos e governos que formalmente se definem como seus opositores. A primeira prioridade do presidente Clinton, nos Estados Unidos, foi reduzir o déficit orçamentário, e a segunda foi adotar uma legislação draconiana e regressiva contra a delinqüência, lema principal também da nova liderança trabalhista na Inglaterra. O temário político segue sendo ditado pelos parâmetros do neoliberalismo, mesmo quando seu momento de atuação econômica parece amplamente estéril ou desastroso. Como explicar esse segundo alento no mundo capitalista avançado? Uma de suas razões fundamentais foi claramente a vitória do neoliberalismo em outra área do mundo, ou seja, a queda do comunismo na Europa oriental e na União Soviética, de 89 a 91, exatamente no momento em que os limites do neoliberalismo no próprio Ocidente tornavam-se cada vez mais óbvios. Pois a vitória do Ocidente na guerra fria, com o colapso de seu adversário comunista, não foi o triunfo de qualquer capitalismo, mas o do tipo específico liderado e simbolizado por Reagan e Thatcher nos anos 80. Os novos arquitetos das economias pós-comunistas no Leste, gente como Balcerovicz na Polônia, Gaidar na Rússia, Klaus, na República Tcheca, eram e são seguidores convictos de Hayek e Friedman, com um menosprezo total pelo keynesianismo e pelo Estado de bem-estar, pela economia mista e, em geral, por todo o modelo dominante do capitalismo ocidental do período pós-guerra. Estas lideranças políticas preconizam e realizam privatizações muito mais amplas e rápidas do que haviam sido feitas no Ocidente. Para sanear suas economias, aceitam quedas de produção infinitamente mais drásticas do que haviam sido aceitas no Ocidente. E promovem graus de desigualdade – sobretudo de empobrecimento da maior parte da população – muito mais brutais do que tínhamos visto nos países do Ocidente.



Não há neoliberais mais intransigentes no mundo do que os "reformadores" do Leste. Dois anos atrás, Vaclav Klaus, primeiro-ministro da República Tcheca, atacou publicamente o presidente do Federal Reserve Bank dos Estados Unidos no governo Reagan, Allan Greenspan, acusando-o de demonstrar debilidade e frouxidão lamentáveis em sua política monetária. Em artigo para a revista The Economist, Klaus foi incisivo: "O sistema social da Europa ocidental está demasiadamente amarrado por regras e pelo controle social excessivo. O Estado de bem-estar, com todas as suas transferências de pagamentos generosos desligados de critérios, de esforços ou de méritos, destrói a moralidade básica do trabalho e o sentido de responsabilidade individual. Há excessiva proteção e burocracia. Deve-se dizer que a revolução thatcheriana, ou seja, antikeynesiana ou liberal, parou – numa avaliação positiva – no meio do caminho na Europa ocidental e é preciso completá-la". Bem entendido, esse tipo de extremismo neoliberal, por influente que seja nos países pós-comunistas, também desencadeou uma reação popular, como se pôde ver nas últimas eleições na Polônia, na Hungria e na Lituânia, onde partidos ex-comunistas ganharam e agora governam de novo seus países. Mas, na prática, suas políticas no governo não se distinguem muito daquela de seus adversários declaradamente neoliberais. A deflação, a desmontagem de serviços públicos, as privatizações de empresas, o crescimento de capital corrupto e a polarização social seguem, um pouco menos rapidamente, porém com o mesmo rumo. A analogia com o euro-socialismo do sul da Europa é evidente. Em ambos os casos há uma variante mansa – pelo menos no discurso, senão sempre nas ações – de um paradigma neoliberal comum na direita e na esquerda oficial. O dinamismo continuado do neoliberalismo como força ideológica em escala mundial está sustentado em grande parte, hoje, por este "efeito de demonstração" do mundo pós-soviético. Os neoliberais podem gabar-se de estar à frente de uma transformação sócio-econômica gigantesca, que vai perdurar por décadas.



O impacto do triunfo neoliberal no leste europeu tardou a ser sentido em outras partes do globo, particularmente, pode-se dizer, aqui na América Latina, que hoje em dia se converte na terceira grande cena de experimentações neoliberais. De fato, ainda que em seu conjunto tenha chegado a hora das privatizações massivas, depois dos países da OCDE e da antiga União Soviética, genealogicamente este continente foi testemunha da primeira experiência neoliberal sistemática do mundo. Refiro-me, bem entendido, ao Chile sob a ditadura de Pinochet. Aquele regime tem a honra de ter sido o verdadeiro pioneiro do ciclo neoliberal da história contemporânea. O Chile de Pinochet começou seus programas de maneira dura: desregulação, desemprego massivo, repressão sindical, redistribuição de renda em favor dos ricos, privatização de bens públicos. Tudo isso foi começado no Chile, quase um decênio antes de Thatcher, na Inglaterra. No Chile, naturalmente, a inspiração teórica da experiência pinochetista era mais norte-americana do que austríaca. Friedman, e não Hayek, como era de se esperar nas Américas. Mas é de se notar que a experiência chilena dos anos 70 interessou muitíssimo a certos conselheiros britânicos importantes para Thatcher, e que sempre existiram excelentes relações entre os dois regimes nos anos 80. O neoliberalismo chileno, bem entendido, pressupunha a abolição da democracia e a instalação de uma das mais cruéis ditaduras militares do pós-guerra. Mas a democracia em si mesma – como explicava incansavelmente Hayek – jamais havia sido um valor central do neoliberalismo. A liberdade e a democracia, explicava Hayek, podiam facilmente tornar-se incompatíveis, se a maioria democrática decidisse interferir com os direitos incondicionais de cada agente econômico de dispor de sua renda e de sua propriedade como quisesse. Nesse sentido, Friedman e Hayek podiam olhar com admiração a experiência chilena, sem nenhuma inconsistência intelectual ou compromisso de seus princípios. Mas esta admiração foi realmente merecida, dado que – à diferença das economias de capitalismo avançado sob os regimes neoliberais dos anos 80 – a economia chilena cresceu a um ritmo bastante rápido sob o regime de Pinochet, como segue fazendo com a continuidade da política econômica dos governos pós-Pinochet dos últimos anos.



Se o Chile, nesse sentido, foi a experiência-piloto para o novo neoliberalismo dos países avançados do Ocidente, a América Latina também proveu a experiência-piloto para o neoliberalismo do Oriente pós-soviético. Aqui me refiro, bem entendido, à Bolívia, onde, em 1985, Jeffrey Sachs já aperfeiçoou seu tratamento de choque, mais tarde aplicado na Polônia e na Rússia, mas preparado originariamente para o governo do general Banzer, depois aplicado imperturbavelmente por Victor Paz Estenssoro, quando surpreendentemente este último foi eleito presidente, em vez de Banzer. Na Bolívia, no fundo da experiência não havia necessidade de quebrar um movimento operário poderoso, como no Chile, mas parar a hiperinflação. E o regime que adotou o plano de Sachs não era nenhuma ditadura, mas o herdeiro do partido populista que havia feito a revolução social de 1952. Em outras palavras, a América Latina também iniciou a variante neoliberal "progressista", mais tarde difundida no sul da Europa, nos anos de euro-socialismo. Mas o Chile e a Bolívia eram experiências isoladas até o final dos anos 80.



A virada continental em direção ao neoliberalismo não começou antes da presidência de Salinas, no México, em 88, seguida da chegada ao poder de Menem, na Argentina, em 89, da segunda presidência de Carlos Andrés Perez, no mesmo ano, na Venezuela, e da eleição de Fujimori, no Peru, em 90. Nenhum desses governantes confessou ao povo, antes de ser eleito, o que efetivamente fez depois de eleito. Menem, Carlos Andrés e Fujimori, aliás, prometeram exatamente o oposto das políticas radicalmente antipopulistas que implementaram nos anos 90. E Salinas, notoriamente, não foi sequer eleito, mas roubou as eleições com fraudes.



Das quatro experiências viáveis desta década, podemos dizer que três registraram êxitos impressionantes a curto prazo – México, Argentina e Peru – e uma fracassou: Venezuela. A diferença é significativa. A condição política da deflação, da desregulamentação, do desemprego, da privatização das economias mexicana, argentina e peruana foi uma concentração de poder executivo formidável: algo que sempre existiu no México, um regime de partido único, com efeito, mas Menem e Fujimori tiveram de inovar na Argentina e no Peru com uma legislação de emergência, autogolpes e reforma da Constituição. Esta dose de autoritarismo político não foi factível na Venezuela, com sua democracia partidária mais contínua e sólida do que em qualquer outro país da América do Sul, o único a escapar de ditaduras militares e de regimes oligárquicos desde os anos 50. Daí o colapso da segunda presidência de Carlos Andrés.



Mas seria arriscado concluir que somente regimes autoritários podem impor com êxito políticas neoliberais na América Latina. A Bolívia, onde todos os governos eleitos depois de 1985, tanto de Paz Zamora, quanto de Sanchez Losada, continuaram com a mesma linha, está aí para comprovar o oposto. A lição que fica da longa experiência boliviana é esta: há um equivalente funcional ao trauma da ditadura militar como mecanismo para induzir democrática e não coercitivamente um povo a aceitar políticas neoliberais das mais drásticas. Este equivalente é a hiperinflação. Suas conseqüências são muito parecidas. Recordo-me de uma conversa que tive no Rio de Janeiro, em 1987, quando era consultor de uma equipe do Banco Mundial e fazia uma análise comparativa de cerca de 24 países do Sul, no que tocava a políticas econômicas. Um amigo neoliberal da equipe, sumamente inteligente, economista destacado, grande admirador da experiência chilena sob o regime de Pinochet, confiou-me que o problema crítico no Brasil durante a presidência de Sarney não era uma taxa de inflação demasiado alta – como a maioria dos funcionários do Banco Mundial tolamente acreditava –, mas uma taxa de inflação demasiado baixa. "Esperemos que os diques se rompam", ele disse, "precisamos de uma hiperinflação aqui, para condicionar o povo a aceitar a medicina deflacionária drástica que falta neste país". Depois, como sabemos, a hiperinflação chegou ao Brasil, e as conseqüências prometem ou ameaçam – como se queira – confirmar a sagacidade deste neoliberal indiano.



A pergunta que está aberta é se o neoliberalismo encontrará mais ou menos resistência à implementação duradoura dos seus projetos aqui na América Latina do que na Europa ocidental ou na antiga União Soviética. Seria o populismo – ou obreirismo – latino-americano um obstáculo mais fácil ou mais difícil para a realização dos planos neoliberais do que a social-democracia reformista ou o comunismo? Não vou entrar nesta questão, uma vez que outros aqui podem julgar melhor do que eu. Sem dúvida, a resposta vai depender também do destino do neoliberalismo fora da América Latina, onde continua avançando em terras até agora intocadas por sua influência. Atualmente, na Ásia, por exemplo, a economia da Índia começa, pela primeira vez, a ser adaptada ao paradigma liberal, e até mesmo o Japão não está totalmente imune às pressões norte-americanas para abolir regras. A região do capitalismo mundial que apresenta mais êxitos nos últimos 20 anos é também a menos neoliberal, ou seja, as economias do extremo oriente – Japão, Coréia, Formosa, Cingapura, Malásia. Por quanto tempo estes países permanecerão fora da esfera de influência do neoliberalismo? Tudo que podemos dizer é que este é um movimento ideológico, em escala verdadeiramente mundial, como o capitalismo jamais havia produzido no passado. Trata-se de um corpo de doutrina coerente, autoconsciente, militante, lucidamente decidido a transformar todo o mundo à sua imagem, em sua ambição estrutural e sua extensão internacional. Eis aí algo muito mais parecido ao movimento comunista de ontem do que ao liberalismo eclético e distendido do século passado.



Nesse sentido, qualquer balanço atual do neoliberalismo só pode ser provisório. Este é um movimento ainda inacabado. Por enquanto, porém, é possível dar um veredicto acerca de sua atuação durante quase 15 anos nos países mais ricos do mundo, a única área onde seus frutos parecem, podemos dizer assim, maduros. Economicamente, o neoliberalismo fracassou, não conseguindo nenhuma revitalização básica do capitalismo avançado. Socialmente, ao contrário, o neoliberalismo conseguiu muitos dos seus objetivos, criando sociedades marcadamente mais desiguais, embora não tão desestatizadas como queria. Política e ideologicamente, todavia, o neoliberalismo alcançou êxito num grau com o qual seus fundadores provavelmente jamais sonham, disseminando a simples idéia de que não há alternativas para os seus princípios, que todos, seja confessando ou negando, têm de adaptar-se a suas normas. Provavelmente nenhuma sabedoria convencional conseguiu um predomínio tão abrangente desde o início do século como o neoliberal hoje. Este fenômeno chama-se hegemonia, ainda que, naturalmente, milhões de pessoas não acreditem em suas receitas e resistam a seus regimes. A tarefa de seus opositores é a de oferecer outras receitas e preparar outros regimes. Apenas não há como prever quando ou onde vão surgir. Historicamente, o momento de virada de uma onda é uma surpresa.



___________________







ANDERSON, Perry. Balanço do neoliberalismo. In: SADER, Emir & GENTILI, Pablo (orgs.) Pós-neoliberalismo: as políticas sociais e o Estado democrático. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1995, pp. 09-23