domingo, 19 de outubro de 2008


Entrevista


JOÃO FRAGOSO
''O problema não é só a elite''
Professor da UFRJ diz que escravos também foram responsáveis pela escravidão e que o marxismo prejudicou o estudo dos ricos

Por FRANCISCO ALVES FILHO


Apesar da personalidade tímida e do jeito afável, o historiador carioca João Fragoso, 49 anos, não tem medo de enfrentar grandes polêmicas. Professor da Universidade Federal do Rio de Janeiro, ele tem causado controvérsia por classificar como superadas muitas das idéias de ninguém menos do que Karl Marx. Mesmo formado no marxismo, corrente majoritária no ensino de história na década de 70, ele entende que vários postulados do intelectual alemão se esgotaram. “Não há mais cabimento considerar que somos apenas robôs inseridos em grandes estruturas, como o capitalismo ou o feudalismo”, critica Fragoso. “Por trás dessa alegoria há pessoas com alma e vontade própria.” Sua posição lhe rende vários ataques, vindos principalmente de seus colegas da Universidade de São Paulo (USP), onde o marxismo é tido como parâmetro fundamental para entender a sociedade.


Outro vespeiro é seu tema preferencial de estudos: a elite brasileira no período colonial. “Descobri que havia muitas pesquisas sobre escravos e operários, mas quase nada sobre as elites”, explica. O historiador carioca escreveu sete livros e seu artigo Fidalgos e parentes de pretos está incluído no livro Conquistadores & negociantes, recém-lançado pela editora Civilização Brasileira. Sua linha de pesquisa leva a conclusões que dão combustível para discussões acaloradas. Ele contesta, por exemplo, que as elites brasileiras sejam o grande vilão das mazelas sociais do Brasil. “Nós e a elite somos cúmplices de nossa história”, corrige. Nessa linha de raciocínio, é capaz de afirmações explosivas, como uma das que soltou na entrevista à ISTOÉ: “O escravo também foi responsável pela escravidão.” Ele não liga para uma possível reação de acadêmicos. “O debate é saudável e a academia é o melhor lugar para isso.”


ISTOÉ – O marxismo deixou de ser um instrumento para entender a história?


João Fragoso – Minha formação é marxista. No entanto, o marxismo dá ênfase excessiva ao estruturalismo. Ou seja, as pessoas seriam robôs ou zumbis de grandes estruturas, capitalistas ou feudais, e não agentes. Todos nasceriam com o código genético correspondente às leis daquela estrutura. Ao se enfatizar por demais a importância de um modo de produção, as pessoas ficam em segundo plano. Isso impede, por exemplo, o estudo dos escravos, das diferenças entre eles, de suas relações com os senhores.


ISTOÉ – Que outros problemas o sr. identifica na visão marxista?


Fragoso – A conclusão de qualquer pesquisa já estava dada antes do início do estudo. Por exemplo: eu sei que o escravo vai apanhar e vai trabalhar e a elite é a culpada, por ser formada por brutamontes que não pensam. Desde a minha época de graduação, a culpa é sempre da burguesia, a culpa é sempre do senhor de engenho. Mas quem são eles? São tidos como um bando de pessoas sem coração, quando o certo seria vê-los como humanos. Personagens que são rudes de manhã, mas à tarde podem ter outra postura. O marxismo transforma os agentes sociais em números e por trás desses números você tem almas. Além disso, Marx, como bom filho do século XIX, era evolucionista. Sua obra tem aquela mensagem de que todos caminhamos para o comunismo. Isso está completamente equivocado, a história está aberta.


ISTOÉ – Então essa linha de pensamento se perdeu?


Fragoso – Não. Ainda há pontos importantes. A visão marxista representa um apelo ao racionalismo. Preocupa-se em explicar e em elaborar teorias. Inevitavelmente, o marxismo ensina que nenhuma sociedade consegue viver com as contas desequilibradas. Não é possível que o custo de uma nação seja superior à sua produção. Aí, sim, chegamos ao processo econômico, dos meios de produção. Não está descartada a noção de que, para sonhar, o homem precisa comer e beber.


ISTOÉ – Por que o sr. resolveu estudar as elites brasileiras?



Fragoso – Eu fiz minha graduação nos anos 70, durante a ditadura militar. Na época, estudava-se muito o comportamento dos chamados grupos subalternos: operários, camponeses, escravos. Colocavam em segundo plano o estudo das ditas elites. Um dos traços do Brasil é justamente a presença de uma hierarquia ciosa de seu poder. Mas o seu estudo era menosprezado. Lembro de um panfleto distribuído na faculdade que dizia que a direita não pensa. Isso me deixou transtornado. Como assim, nós aqui, aniquilados pela ditadura e esse pessoal dizendo que a direita não pensa? Era como se a direita não conhecesse a luta de classes. Na época, um colega bem-humorado comentou que o estudo das elites é tão importante que, por isso, Marx escreveu O capital e não O trabalho (risos).
"Henry Ford foi um titular da grande fortuna nos EUA. No Brasil nós sabemos mais sobre a escravidão do que sobre as nossas elites”


ISTOÉ – O sr. acredita que a esquerda ainda pense assim?


Fragoso – O tempo mostrou que essa posição era, no mínimo, equivocada, para não dizer idiota. Hoje, a preocupação é tentar ultrapassar algumas coisas como a teoria da dependência (criada pelos sociólogos Fernando Henrique Cardoso e Enzo Faletto, entre outros) e outras formulações que levam a uma resposta fácil de que a culpa do que nos acontece é dos outros.


ISTOÉ – É o discurso de que a culpa é sempre do dominador?


Fragoso – Também o chamado oprimido tem sua percepção, tem sua visão de mundo, seus valores e suas estratégias. Nessa reviravolta descobriu-se que a direita pensa e tem mais de dois neurônios, não é necessariamente um brutamontes. Ela domina não apenas através de lavagem cerebral ou na base da opressão militar. Além disso, percebe-se que a relação entre oprimido e opressor, vista de uma forma um tanto maniqueísta, deve ser reestudada. Um dos perigos que se tinha antes era o de tentar colocar os males do País, as desigualdades, sempre como culpa das elites. O filho de uma colega que está no ensino médio diz que as provas de história são as mais fáceis porque a burguesia é sempre culpada. Ele diz que sempre tira dez.


ISTOÉ – O sr. está absolvendo as elites?


Fragoso – Não. Pelo contrário. Acho que as elites são pouco estudadas. E para tentar entender a perversidade da sociedade brasileira é preciso um esforço concentrado para estudá-las. É muito fácil delegar a culpa ao outro e se isentar de qualquer tipo de responsabilidade. Uma das seqüelas de vitimizar o oprimido é retirar dele a capacidade de ação, de negociar e de pensar, sua condição de humanidade. Hoje se sabe que não só as elites pensam, como também os grupos subalternos pensam e têm suas estratégias. Há um confronto, que não necessariamente é um quebrapau, mas confrontos do dia-a-dia, relações que formam um processo histórico. Obviamente, os recursos dos grupos chamados oprimidos são menores do que os dos opressores. Mas isso não os impede de planejar e tentar negociar, de tentar sobreviver.


ISTOÉ – O sr. acredita em dominação cordial?


Fragoso – Não. Dominação nunca é cordial. Ela pressupõe tensão, embates. Conseqüentemente, a cordialidade está fora do jogo. O que eu digo é que houve uma cumplicidade, que o escravo também foi responsável pela escravidão, assim como o senhor o foi, assim como todas as pessoas que viveram naquela sociedade. Não tem vítima. Uma figura pode ser vítima, mas um grupo social, não. Isso seria tirar a capacidade dos escravos de fazer sua própria história. A idéia de vítima é mal aplicada; essa imagem começou a ser elaborada a partir da Revolução Francesa. Na França do século XVIII, tínhamos 14 milhões de camponeses. Posso dizer que eram todos vítimas nas mãos de meia dúzia? O mesmo acontece na contraposição atual entre elites e excluídos. Este é um país democrático, o Congresso foi eleito democraticamente. Não há vítimas.


ISTOÉ – O sr. quer dizer que os chamados oprimidos têm condições de moldar o próprio destino?


Fragoso – Com certeza. Nossa sociedade tem de assumir os próprios acertos e erros. Nós e a elite somos cúmplices de nossa história. Há tensões, mas como cidadão não posso me eximir de responsabilidade e culpar apenas as elites pelo estado em que este país se encontra. Nós somos agentes, e não vítimas, da situação. Não significa que a sociedade não tenha uma hierarquia, que não haja diferenças, mas, dentro desse cenário, temos um espaço de ação. Temos a possibilidade de construção e transformação.
"Dentro de todos nós, brasileiros, existe um coronel da República Velha. Um coronel pardo e racista”


ISTOÉ – Qual é a responsabilidade das elites no caos social brasileiro?


Fragoso – Entender esse quadro é o meu esforço, mas há poucos estudos sobre o assunto. Pode-se dizer tranqüilamente o nome de um titular de grande fortuna nos EUA no fim do século XIX e início do século XX: Henry Ford, por exemplo. Diga o nome de um titular aqui no Brasil. Não se conhece! Isso seria um estudo elementar: quais são as grandes fortunas? Sabemos que o País tem uma das maiores concentrações de renda. Quando a gente tenta nomear os agentes dessa concentração, fica complicado. O comendador Valim, por exemplo, morreu em 1872 e tinha o correspondente a 10% do numerário em circulação no País – e ele está longe de ser uma das maiores fortunas. Isso mostra o grau de desconhecimento. Sabemos muito mais sobre a escravidão do que sobre as elites.


ISTOÉ – A escravidão determinou a exclusão social que existe hoje no Brasil?


Fragoso – Não sei se foi determinante. Mas a herança da escravidão se traduz também na existência de uma estratificação no interior dos oprimidos. Aquela história na qual dois carros guiados por motoristas particulares colidem. Um deles desce o vidro e pergunta: você sabe quem é o meu patrão? É o racismo de um negro para outro ou de um mulato para outro ou de um negro em situação um pouco melhor para outro negro em situação inferior.


ISTOÉ – O racismo é um mal generalizado entre os brasileiros?


Fragoso – Digo aos meus alunos: dentro de todos nós, brasileiros, existe um pequeno coronel da República Velha. É um coronel pardo e racista. Se existe uma cultura brasileira, um de seus traços definidores é a presença desse personagem.


ISTOÉ – A política de cotas pode ajudar a amenizar essa exclusão?


Fragoso – Confesso que não tenho uma opinião formada. Mas essa concepção me preocupa pelas seqüelas que pode trazer. Em primeiro lugar, a idéia de etnia, que já está ultrapassada. Temos no Brasil uma miscigenação fantástica. Eu, por exemplo, declaro minha cor dependendo do meu humor. Algumas vezes me declaro branco, outras pardo e outras negro. A miscigenação é um fenômeno muito importante. Isso coloca a discussão de cotas em outro patamar. Talvez devessem ser definidas por critérios socio- econômicas em vez da cor da pele. Uma pesquisa recente mostrou que vários negros brasileiros têm mais DNA de europeu do que de negro.


ISTOÉ – Se a discriminação é mais praticada contra negros, não seria correto concluir que a noção de etnia existe na vida real?


Fragoso – Com certeza. O que quero sublinhar é que, muitas vezes, aquele policial que pára o negro ou o mulato em uma blitz também é negro. São as diferenças no interior da senzala. Além de oprimido e opressor, temos também esse tipo de racismo, fundamental para entendermos nossa condição. Acho que damos pouca atenção a isso.


ISTOÉ – A palavra miscigenação não é usada para esconder o racismo na sociedade brasileira?


Fragoso – Certamente. Toda discussão corre o risco de cair em posições radicais que evitam, exatamente, a solução dos problemas. Nós somos miscigenados, porém existe de fato o racismo contra as pessoas de pele negra. Há o racismo, mas acho que estamos em um nível diferente do dos EUA, onde um senador pode ser eleito no sul tendo como plataforma a repressão violenta contra os negros. No Brasil, um político assim nunca seria eleito.


ISTOÉ – Além do marxismo, o sr. contesta um de seus produtos, a teoria da dependência. Por quê?


Fragoso – A teoria da dependência sofreu uma série de baixas. A primeira foi ainda nos anos 70, quando vários estudos mostraram que a Revolução Industrial dependeu pouco dos recursos vindos da periferia. Além disso, o Brasil está entre os maiores PIBs do mundo e sua importância é amplamente reconhecida. Assim como a Índia, a China e a Rússia. Essa nova conjuntura definitivamente joga por terra a idéia da dependência, até porque a teoria da dependência não vislumbrava uma situação como essa. Na minha juventude, várias vezes fui para a rua e apanhei por protestar contra o capital internacional, contra as multinacionais. Hoje em dia, esse dinheiro faz a alavancagem da nossa economia. Agora, há uma distribuição desigual, o que não tem necessariamente a ver com a influência de um poder externo.


Edição 1995 - 30 DE JANEIRO/2008

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