quarta-feira, 8 de setembro de 2010

009 - Historiador diz que Brasil é mais conformista do que outros países latino-americanos



Para João Furtado, estudioso da Inconfidência Mineira, raízes históricas explicam por que ânimo cívico dos cidadãos de outros países latino-americanos é maior do que o dos brasileiros, acostumados à abstenção.



Dentro do projeto "Da Terra do Fogo a Tijuana", que tematiza o bicentenário de independência dos países latino-americanos, o historiador João Pinto Furtado fala à Deutsche Welle a respeito dos mitos que envolvem a Inconfidência Mineira e dos preâmbulos da Independência do Brasil, que aconteceu em 1822.

Leia abaixo a íntegra da entrevista, em que Furtado ressalta a diversidade de perfis dos inconfidentes, compara o movimento às rebeliões ocorridas na Bahia e em Pernambuco e analisa como "nossa cidadania sempre foi muito mais trabalhada sob o signo da omissão que da participação".



Deutsche Welle: Você poderia situar a Inconfidência Mineira e o processo de Independência do Brasil no contexto latino-americano?

João Pinto Furtado: A economia passava no final do século 18 por um período de reestruturação. As grandes nações europeias tinham construído toda uma máquina de arrecadação, um império colonial, uma série de relações que em certo sentido cotizaram o controle do mundo conhecido. Todas as áreas da América eram permeáveis de alguma forma à interferência de alguma dessas nações.

Mas ao longo do século 18, o próprio universo europeu começou a se transformar. Algumas ideias foram surgindo e reformatando a relação entre as antigas metrópoles e suas colônias. Dentro desse processo de reformatação, surge uma crítica muito veemente à ideia da colonização como um todo.

Alguns teóricos iluministas tentaram rever as relações entre as metrópoles e suas colônias. A ideia fundamental era a de que todos os povos teriam algum direito à própria autodeterminação e ao direito de dispor sobre seus próprios percursos. Essas ideias começaram a chegar às elites tanto norte quanto latino-americanas.

Na América Latina, essas ideias começaram a questionar inicialmente o estatuto colonial. No caso do Brasil, perguntava-se por que um país rico como este teria que remeter parte de suas riquezas a Portugal. Perguntava-se com frequência qual era a legitimidade disso. Pois esse Estado do século 18 era uma esponja – a metáfora é da época – que tentava sugar toda a energia vital das colônias e, de fato, não dava nada em troca. O Estado arrecadava porque julgava que era direito do rei e pronto.

No Brasil, isso foi criando uma situação de muita insatisfação, porque você tinha um sistema de aferição de riquezas de mão única e nunca voltava nada do Estado. Isso foi criando um descontentamento muito grande. Com o advento do Iluminismo e das ideias liberais ganhando campo, parte das elites começou a reproduzir parte dessa ideologia e com isso criou-se um sistema de insurgência. E o questionamento da ordem metropolitana, mercantilista.

Esses insurgentes pertenciam às elites locais?

Sim. Os libertadores de outros trechos da América Latina, como do vice-reino do Prata ou do vice-reino do Peru, todos eles tinham uma origem elitista. Muito frequentemente tinham descendência ou até eram estrangeiros, tinham uma origem branca e nunca usavam o ideário ou a identidade indígena como argumento.

O presidente boliviano Evo MoralesIsso é uma diferença grande em relação ao contexto atual, em que você tem um Evo Morales, por exemplo, que evoca sua condição de indígena para postular uma autonomia nativa, por assim dizer. Esse processo é contemporâneo, na época da independência isso não era visto como um valor. As elites se julgavam tão mais elites quanto mais europeias elas fossem. Estudavam na Europa e se orgulhavam de ler autores que eram populares na Europa naquele momento.

Os inconfidentes foram movidos por razões meramente “egoístas”, de teor econômico, numa ânsia de não repassar mais riquezas para a metrópole? Não houve ali nenhum viés de luta por uma independência do país como nação com uma identidade própria? Os inconfidentes ignoravam, por exemplo, a abolição da escravatura...

A Inconfidência Mineira foi um movimento híbrido. Havia pelo menos 25 protagonistas, com interesses e motivações muito distintas. Havia alguns intelectuais, entre estes leitores assíduos dos teóricos do Iluminismo, pessoas com intenção de incluir o país numa certa forma de modernidade. E talvez até o próprio Tiradentes, que pelo que apreendi de sua figura, era uma pessoa interessada na construção de um futuro político.

Outros eram extremamente pragmáticos e não tinham esse horizonte emancipatório, libertador, revolucionário que o Iluminismo prognosticava. Eram conservadores em sua essência, membros de uma elite nobre, sem interesse de abrir mão dessa posição. Entre estes percebo certo pragmatismo, para não dizer oportunismo, ou seja, a ideia era demonstrar descontentamento para negociar com a Coroa e, com isso, melhorar suas posições de poder.

E havia os demais que ora gravitavam em torno do grupo que pensava uma alternativa política para o país e ora em torno do grupo que pensava pragmaticamente, de olho somente no próprio bolso. Essa heterogeneidade é a grande marca da Inconfidência Mineira, um movimento que, por isso, é muito difícil de ser classificado.

Quando a Inconfidência Mineira foi projetada, ela tinha um pé no passado e outro no futuro. Quando foi reprimida, o futuro começou a se apropriar dela. Ou seja, o futuro, historiograficamente falando, começou a construir essa ideia de que a Inconfidência havia sido uma grande utopia, renovadora, libertadora, nacionalista etc.

Mas quem construiu essa ideia foram aqueles que, no processo de independência do Brasil, foram reler a Inconfidência Mineira, quer dizer, 30 anos depois, voltaram os olhos para o passado e falaram: 'olha, tinha aquele pessoal lá em Minas, que pensou nisso'.

Mas aí pinçaram só as teses que lhes interessavam, aquelas que comprovavam a ideia de que havia um processo de emancipação em curso. E com isso acabaram construindo uma visão mistificadora: a de que a Inconfidência havia sido um movimento nativista por excelência.

E em relação aos outros movimentos, na Bahia em Pernambuco?

Na Bahia foi diferente. É preciso entender que a Inconfidência Mineira foi desbaratada a partir de março de 1789, quando não havia ainda eclodido o que ficou conhecido como Revolução Francesa. As ideias que chegavam a Minas Gerais naquele momento vinham através de livros e intelectuais, não eram ainda de um movimento social.

A partir do mesmo ano, quando a Inconfidência não existia mais, os franceses começam a acelerar e aquilo que ficou conhecido como a Revolução Francesa acontece de forma vertiginosa, ganhando, de fato, uma repercussão social muito grande. Isso transparece para o mundo inteiro.

Aí os baianos, quando têm notícia do que estava acontecendo na França, certamente se deixaram bafejar por essa inspiração. Eles não foram inspirados por ideias, mas por fatos concretos. Entre eles havia gente que falava: ‘vamos abolir a escravidão, acabar com as desigualdades, romper com a nobreza, com as elites, com a hierarquia”. Embora essa tentativa baiana também contasse com membros da elite.

Sob esse ponto de vista, a Revolução dos Alfaiates na Bahia seria até mesmo mais simbólica para o processo de independência do Brasil que a Inconfidência Mineira?

O movimento da Bahia, no entanto, não foi recuperado por uma série de motivos. Primeiro, ele não se prestava a uma apropriação, porque era radical demais para ser pensado simbolicamente, por exemplo quanto ao tema da escravidão, o que não houve de forma alguma em Minas Gerais.

Ao se apropriar da memória da Inconfidência Mineira, ela já vinha desapropriada desse caráter anti-escravagista. Já a baiana não, para fazer isso eles teriam que ter feito muita mágica. Esse é um dos fatores que fizeram com que a Inconfidência Mineira fosse privilegiada como movimento fundacional da independência.

E pelo fato de que sua repressão se deu no ano de 1989, dava-se uma associação muito fácil do ponto de vista ‘publicitário’ com os franceses. Criava-se aquela ideia: ‘olha, enquanto os franceses lá pensavam, pensávamos nós aqui também’. Isso criava certa simpatia pelo movimento.

O Brasil não rompeu realmente com a metrópole ao se tornar independente, o que ocorreu com outros países latino-americanos. Você poderia traçar um paralelo entre essas duas realidades?

No Brasil, o processo de emancipação foi conduzido por um descendente de quem até então estava no poder. O discurso tinha que ser relativamente moderado, não dava para vir com esse radicalismo revolucionário. Esse foi o primeiro ponto que criou certo distanciamento entre outros países latino-americanos e o Brasil.

Além de que, no Brasil, mantivemos a monarquia, enquanto em praticamente todos os outros países latino-americanos foi adotado o modelo republicano, o que gerava uma ruptura mais radical, ou seja, a ideia de estar começando do 'ano zero'. A república ‘reiniciou o tempo’. No caso do Brasil, não. A dinastia, a elite, a aristocracia era as mesmas. E portanto o controle das terras, do escravo, dos cargos e do Estado continuava a pertencer às mesmas pessoas.

Isso, do ponto de vista, nacionalista, gerava pouco fervor, ou seja, gerava a sensação de que a revolução era dos outros. Enquanto nos outros países a república gerou algum tipo de câmbio no desenho do próprio Estado. E isso com certeza gera diferenças profundas na percepção do fenômeno, tanto à época quanto na sua força e vigor de alimentar uma cidadania.

No caso do Brasil, nossa cidadania sempre foi muito mais trabalhada sob o signo da omissão que da participação. Há uma política de séculos, que não privilegia a participação no ato político, mas que privilegia, na verdade, o usofruto das benesses do Estado. Com isso, obviamente, o fervor cívico tende a ser menor.

Concordo com a ideia de que no Brasil, se compararmos com o Chile, a Argentina, até mesmo com o Paraguai, o nacionalismo é visto como um pouco fake, como algo antinatural. Não temos o mesmo orgulho cívico que essas outras nações.

Essa diferença de comportamento separa os brasileiros dos outros latino-americanos?

Sim, essa diferença tem raízes históricas, foi construída historicamente e criou diferentes leituras do que seja a nacionalidade. Enquanto em outros países latino-americanos essa ideia de nacionalidade é mais arraigada, mais participativa, a nossa é mais calcada na abstenção, no conformismo. Até hoje, eu diria.

É claro que um cientista político talvez fosse divergir do que eu digo afirmando que não há como classificar isso. No que ele teria razão, mas, mesmo assim, a percepção que o senso comum me dá e que a leitura crítica desse senso comum me dá tende a reiterar essa ideia. Nosso nacionalismo é arraigado em disputas esportivas, mas não é aquele que nos faria ir à guerra, por exemplo, por determinado tipo de convicção.

E esse outro tipo de nacionalismo você observa nos outros países latino-americanos?

De certa forma. A Bolívia, por exemplo, está à beira de uma guerra civil. Estão ali divergindo dois projetos de concepções totalmente distintas sobre o que é o Estado, o que é a Bolívia, o que deve ser a gestão etc. Vejo poucas possibilidades de um fenômeno como esse ocorrer no Brasil. Não consigo ver aqui a emergência desse ímpeto, desse ânimo cívico de maneira tão forte.

Não é questão de índole, de que o brasileiro fosse menos isso ou aquilo, é uma construção histórica. Tivemos cinco séculos de exclusão política construindo essa ideia. E a população hoje se julga de fato excluída, ela vai às urnas uma vez a cada quatro anos achando que está fazendo o melhor de si.

Se o voto não fosse obrigatório, iria menos ainda. Na verdade, a população não consegue enxergar a política cotidiana como sendo uma coisa sua. A população brasileira foi historicamente excluída e o preço que a gente paga hoje é esse: o de que essa exclusão continua.

Penso, como historiador, que essa exclusão sempre foi oportuna para quem detinha o mando político, o que continua sendo até hoje. Forjou-se um discurso participativo, mas, na prática, não se fez nada no país para reverter essa situação. Continuamos sob a égide dessa alienação.


João Pinto Furtado, professor de História e diretor da Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade Federal de Minas Gerais, é autor do livro O manto de Penélope – história, mito e memória da Inconfidência Mineira de 1788-9.



Autora: Soraia Vilela


Revisão: Roselaine Wandscheer



Fonte: http://www.dw-world.de/dw/article/0,,5308043,00.html

segunda-feira, 6 de setembro de 2010

008 – Thomas Skidmore: reflexões de um brazilianista (PARTE II)

INDEPENDÊNCIA DO BRASIL: DESAFIOS


“Qual foi o significado desse caminho para a independência brasileira? Primeiro, significava o rompimento dos laços políticos e administrativos com Portugal, que existiam há três séculos. Segundo, porque nunca chegou a haver qualquer questionamento da ordem socioeconômica, significava que o Brasil continuaria a ser dominado pela elite proprietária de terras, que era mais forte no Nordeste, no Rio de Janeiro, em Minas Gerais e em São Paulo. Terceiro, significava que o Brasil estaria sob influência econômica da Inglaterra. Isso tivera início quando os ingleses patrocinaram a transferência da corte portuguesa para o Brasil e emprestraram grandes somas à Coroa portuguesa para ajudá-la a consolidar seus domínios. Os brasileiros deviam agora assumir a grande dívida portuguesa com os britânicos (contraída em parte para lutar contra a independência brasileira!) e concordar em proporcionar aos britânicos condições favoráveis de comércio, isto é, tarifas baixas.

Questões relevantes permaneceram sem solução. A mais importante era a escravidão. O tráfico de escravos era a principal fonte de mão-de-obra do Brasil – e os britânicos estavam ameaçando a cortá-lo, como já haviam feito em 1808 com o tráfico de escravos para os Estados Unidos. Uma segunda questão era como a monarquia poderia assegurar a lealdade das províncias espalhadas pelo Brasil, em especial onde o republicanismo era particularmente forte, como em Pernambuco e em outras áreas do Nordeste. A questão final era o futuro da elite desse novo país. Os afro-brasileiros, escravos e libertos, como vimos, eram mais numerosos do que os brancos quando o Brasil se tornou independente. Em 1823 um observador aristocrático, desencorajado pela onda de revoluções liberais na América espanhola, estimava que dentro de três anos ‘a raça branca chegará ao fim nas mãos de outras raças e a província da Bahia desaparecerá do mundo civilizado’ “.

SKIDMORE, Thomas. Uma História do Brasil. São Paulo: Paz e Terra, 1998, pp. 60-1.

007 – Thomas Skidmore: reflexões de um brazilianista (PARTE I)


                                                    


FAS - “Uma História do Brasil” certamente seria mais uma obra do gênero se não fosse fruto dos olhos de quem está de fora. Afinal, o que teria um estrangeiro a dizer efetivamente sobre a nossa história? Não se trata de um aventureiro e sim de Thomas Skidmore em uma das suas mais ambiciosas obras sobre o nosso país. Nela, este conhecido brazilianista, um dos mais importantes historiadores estadunidenses especialistas em Brasil, tenta apreender o processo integral da formação do Brasil, que, ao seu ver, sempre almejou o status de país moderno e reconhecido internacionalmente.

A partir de hoje, “Historiografia em Controvérsia” está iniciando algumas transcrições desta obra. Estes trechos devem servir para refletirmos sobre os rumos do país e principalmente como seus variados problemas e desafios foram enfrentados ao longo da história.

Para saber mais sobre o autor:



Acessado em 06 de setembro de 2010

domingo, 5 de setembro de 2010

006 - Resenha do livro "Maldita Guerra" de Francisco Doratioto

FAS - Caros alunos, segue abaixo o link da resenha que servirá de base para a resenha que vocês deverão entregar sobre a Guerra do Paraguai. Façam o download, leiam e procurem compará-la com o que está exposto no módulo de vocês. Bom trabalho!


FAS - Para ajudá-los, segue também abaixo uma leitura complementar não obrigatória.


A guerra das versões


Um historiador diz que a Guerra do Paraguai não foi bem do jeito que se tem ensinado na escola

Marcelo Marthe


Nenhum episódio do passado brasileiro tem dividido tanto os historiadores quanto a Guerra do Paraguai. Encerrado há 132 anos, ao custo de mais de 200.000 vidas, o conflito já foi contado e recontado de várias formas. Durante décadas, prevaleceu uma visão oficialista, que enaltecia a vitória brasileira. Nos anos 70, porém, houve uma drástica reviravolta. Autores de esquerda passaram a interpretar os fatos sob a ótica marxista e inverteram os papéis de bandido e mocinho. O ditador paraguaio, Solano López, tornou-se uma espécie de visionário, paladino do progresso social na selva sul-americana. Já a atuação do Brasil passou a ser descrita como vergonhosa. O país só teria ido às armas por pressão da Inglaterra, a superpotência da época, e suas tropas teriam perpetrado um genocídio. Agora, sai uma obra que pretende revisar o revisionismo: Maldita Guerra (Companhia das Letras; 598 páginas; 45 reais). Seu autor, o historiador paulista Francisco Doratioto, está na linha de frente de uma corrente de estudiosos que se empenha em desmantelar a arraigada versão marxista. "A idéia de que Solano López foi um mártir antiimperialista é um disparate", diz ele.

É consenso entre os historiadores que a Guerra do Paraguai foi um momento decisivo na história do continente. Iniciado em dezembro de 1864, o conflito durou cinco anos e envolveu quatro países – Argentina, Brasil, Uruguai e Paraguai. O pomo de discórdia entre os estudiosos do tema sempre foram as razões por trás da luta. A versão marxista apregoa que a destruição do Paraguai foi orquestrada pela Inglaterra, insatisfeita com os ares de autonomia que o país tomava. Para Doratioto, as causas do conflito foram regionais e a intromissão inglesa um fator secundário. Em arquivos que vasculhou na Argentina, Brasil, Portugal, Vaticano e Paraguai, ele recolheu indícios de que a coroa inglesa teve uma atuação mais conciliatória do que se supunha. Pedra de toque em sua argumentação é uma carta inédita enviada ao governo paraguaio pelo cônsul inglês em Buenos Aires, na qual este se propõe a mediar a paz.

Maldita Guerra procura demolir o mito que se criou em torno de Solano López. Segundo Doratioto, a efígie do ditador esclarecido começou a ser forjada em seu país com objetivos pouco nobres. Ela se esboçou, primeiro, numa campanha de marketing promovida por seus familiares para tentar reaver os bens de López confiscados após a guerra. O livro procura mostrar que López, na realidade, foi um "caudilho caricato" que governou o Paraguai como se fosse uma estância rural e implantou um regime de terror contra os opositores. "Como a esquerda se acorvadou no Brasil, estão tentando reescrever a história de um modo desfavorável ao Paraguai", reage o jornalista Julio Chiavenatto, autor do best-seller que nos anos 70 detonou todo o revisionismo de esquerda, Genocídio Americano.

Embora Doratioto dedique parte do livro a desmentir a visão marxista, ele não promove uma volta ao velho tom oficialista. Maldita Guerra é, sobretudo, uma exaustiva retrospectiva do dia-a-dia no campo de batalha – e, ao descrevê-lo, o autor não poupa vencidos nem vencedores. Ele resgata, por exemplo, as vacilações do alto comando brasileiro, que teriam prolongado o conflito além do necessário e causado a perda de milhares de vidas. O almirante Tamandaré, responsável pela esquadra nacional, emerge de suas páginas como um inepto e o conde d'Eu, marido da princesa Isabel, como um covarde. Longe de ser exemplares, os soldados brasileiros eram inclinados à deserção e aos saques. O comportamento das tropas de Solano López não fugia muito disso. Com uma diferença: seus homens estavam programados para lutar até morrer. Ainda hoje, não há um diagnóstico conclusivo sobre as perdas paraguaias na guerra, porque inexistem estatísticas populacionais confiáveis. Segundo o historiador, só uma coisa é certa: elas não caracterizam um genocídio deliberado levado a cabo pelo Brasil. O número de mortos foi uma enormidade, mas não chega perto de 1 milhão de baixas, como os defensores de López sempre brandiram. Até porque, diz Doratioto, a população do Paraguai na época não totalizava a metade disso.


Acessado no dia 05 de setembro de 2010




005 - Eric Hobsbawn compara crise à queda da União Soviética, mas diz que pode fortalecer a direita



BBC

Hobsbawn: Estado terá papel maior na economia daqui por diante.

“A esquerda está virtualmente ausente. Assim, parece-me que o principal beneficiário deste descontentamento atual, com possível exceção nos Estados Unidos, será a direita”, disse o historiador Eri Hobsbawn, ao comparar o momento ao dramático colapso da União Soviética.

"Agora sabemos que estamos no fim de uma era e não se sabe o que virá pela frente”, afirmou ele.

Hobsbawn diz não acreditar que a linguagem marxista, que lhe serviu de norte ao longo de toda sua carreira, será proeminente politicamente, mas intelectualmente “a análise marxista sobre a forma com a qual o capitalismo opera será verdadeiramente importante”.


Abaixo, os principais trechos da entrevista.


Muitos consideram o que está acontecendo como volta ao estatismo e até do socialismo. O senhor concorda?

Bem, certamente estamos vivendo a crise mais grave do capitalismo desde a década de 30. Lembro-me de título recente do Financial Times que dizia: "O capitalismo em convulsão". Há muito tempo não lia título como esse no Financial Times.

Agora, acredito que esta crise está sendo mais dramática por causa dos mais de 30 anos de certa ideologia “teológica” do livre mercado, que todos os governos do Ocidente seguiram. porque, como Marx, Engels e Schumpter previram, a globalização - que está implícita no capitalismo -, não apenas destrói a herança da tradição como é incrivelmente instável: opera por meio de uma série de crises.

E o que está acontecendo agora está sendo reconhecido como o fim de era específica. Todos concordam que, de uma forma ou de outra, o Estado terá papel maior na economia daqui por diante.

Qualquer que seja o papel que os governos venham a assumir, será empreendimento público de ação e iniciativa, que será algo que orientará, organizará e dirigirá também a economia privada. Será muito mais economia mista do que tem sido até agora.

E em relação ao Estado como redistribuidor? O que tem sido feito até agora parece mais pragmático do que ideológico...

Acho que continuará sendo pragmático. O que tem acontecido nos últimos 30 anos é que o capitalismo global vem operando de uma forma incrivelmente instável, exceto, por várias razões, nos países ocidentais desenvolvidos.

No Brasil, nos anos 80, no México, nos 90, no sudeste asiático e Rússia, nos anos 90, e na Argentina, em 2000: todos sabiam que estas coisas poderiam levar a catástrofes a curto prazo. E para nós isto implicava quedas tremendas do FTSE (índice da bolsa de Londres), mas seis meses depois, recomeçávamos de novo.

Agora, temos os mesmos incentivos que tínhamos nos anos 30: se não fizermos nada, o perigo político e social será profundo e ainda mais depois de tudo, da forma com a qual o capitalismo se reformou durante e depois da guerra sob o princípio de “nunca mais” aos riscos dos anos 30.

O senhor viu esses riscos se tornarem realidade: estava na Alemanha quando Adolf Hitler chegou ao poder. O senhor acredita que algo parecido poderia acontecer como conseqüência dos problemas atuais?

Nos anos 30, o claro efeito político da Grande Depressão a curto prazo foi o fortalecimento da direita. A esquerda não foi forte até a chegada da guerra. Então, eu acredito que este é o principal perigo.

Depois da guerra, a esquerda esteve presente em várias partes da Europa, inclusive na Inglaterra, com o Partido Trabalhista, mas hoje isso já não acontece.

A esquerda está virtualmente ausente, Assim, me parece que o principal beneficiário deste descontentamento atual, com uma possível exceção – pelo menos eu espero – nos Estados Unidos, será a direita.

O que vemos agora não é o equivalente à queda da União Soviética para a direita? Os desafios intelectuais que isto implica para o capitalismo e o livre mercado são tão profundos como os desafios enfrentados pela esquerda em 1989?

Sim, concordo. Acredito que esta crise é equivalente ao dramático colapso da União Soviética. Agora sabemos que acabou uma era. Não sabemos o que virá pela frente.

A globalização, que está implícita no capitalismo, não apenas destrói uma herança da tradição como também é incrivelmente instável: opera por meio de uma série de crises.

Temos um problema intelectual: estávamos acostumados a pensar até então que havia apenas duas alternativas: ou o livre mercado ou o socialismo. Mas, na realidade, há muito poucos exemplos de um caso completo de laboratório de cada uma dessas ideologias.

Então eu acho que teremos de deixar de pensar em uma ou em outra e devemos pensar na natureza da mescla. E principalmente até que ponto esta mistura será motivada pela consciência do modelo socialista e das conseqüências sociais do que está acontecendo.

O senhor acredita que regressaremos à linguagem do marxismo?

Desde a crise dos anos 90, são os homens de negócio que começaram a falar assim: “Bem, Marx predisse esta globalização e podemos pensar que este capitalismo está fundamentado em uma série de crises”.

Não acredito que a linguagem marxista será proeminente politicamente, mas intelectualmente a natureza da análise marxista sobre a forma com a qual o capitalismo opera será verdadeiramente importante.

O senhor se sente um pouco recuperado depois de anos em que a opinião intelectual ia de encontro ao que o senhor pensava?

Bem, obviamente há um pouco a sensação de schadenfreude (regozijo pela desgraça alheia). Sempre dissemos que o capitalismo iria se chocar com suas próprias dificuldades, mas não me sinto recuperado.

O que é certo é que as pessoas descobrirão que de fato o que estava sendo feito não produziu os resultados esperados.

Durante 30 anos, os ideólogos disseram que tudo ia dar certo: o livre mercado é lógico e produz crescimento máximo. Sim, diziam que produzia um pouco de desigualdade aqui e ali, mas também não importava muito porque os pobres estavam um pouco mais prósperos.

Agora sabemos que o que aconteceu é que se criaram condições de instabilidades enormes, que criaram condições nas quais a desigualdade afeta não apenas os mais pobres, como também cada vez mais uma grande parte da classe média.

Sobretudo, nos últimos 30 anos, os benefíciários deste grande crescimento temos sido nós, no Ocidente, que vivemos uma vida imensuravelmente superior a qualquer outro lugar do mundo. E me surpreende muito que o Financial Times diga que o que se espera que aconteça agora é que este novo tipo de globalização controlada beneficie a quem realmente precisa, que se reduza a enorme diferença entre nós, que vivemos como príncipes, e a enorme maioria dos pobres.

Fonte: www.socialismo.org.br/portal/filosofia/154-entrevista/614-eric-hobsbawm-compara-crise-a-queda-da-uniao-sovietica-mas-diz-que-pode-fortalecer-a-direita